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A crítica precisa se contaminar pelo cinema

Fotos por Sandio Marçal

História de uma pena, de Leonardo Mouramateus

Vontade de cinema. Realizam-se filmes, e também se produzem textos que querem experimentar esses filmes. Necessidade de pensar o mundo com processos criativos que atravessam as imagens, que se constituem nelas e a partir do movimento proliferante que elas podem desencadear. A crítica de cinema se insere num movimento em que a contaminação pode ser recurso potente. Críticos e realizadores estão envolvidos numa preocupação urgente em constituir pensamento e em intervir no mundo. Estão, dessa forma, engajados em um processo comum, de onde a importância de um estar com, acompanhar gestos de invenção, imergir. Acrescentar, assim, uma possibilidade: pensar o em-se-fazendo da obra.

“Um estado espaço-temporal de interlocução; uma experiência de-si-do-outro-do-contexto; uma situação de colaboração; um exercício de criação coletiva; um experimento de linguagem; um experimento de crítica de arte”, assim escreveu uma vez a crítica e curadora Clarissa Diniz, que esteve à frente, como editora, de uma experiência bastante singular no País. A Tatuí, revista de crítica de arte de Recife, apostou em residências editoriais ao longo de 2010, numa experimentação do próprio fazer artístico e do pensamento crítico, numa imersão coletiva de artistas e críticos, de corpos produzindo subjetividades. A experiência editorial de crítica imersiva desenvolvida pela Tatuí reverberou em mim, e tive o desejo de também tentar algo próximo a uma imersão.

A ideia foi proposta ao realizador Leonardo Mouramateus. Pude estar em dias de ensaio e de filmagens de um curta que deve entrar em breve em processo de montagem, História de uma pena. O dispositivo é diferente das dinâmicas que a Tatuí realizou, mas o conhecimento dessa discussão foi, efetivamente, um desencadeador importante, sobretudo tomando dois pressupostos fundamentais para pensar a crítica: a importância de uma experimentação estética da linguagem, de onde resulta uma concepção da própria crítica como uma obra; e a aposta no movimento de implicação, no estar junto que já desfaz qualquer paradigma de separação entre sujeito e objeto.

Trabalho do filme

Porque se trata de pensar o fazer do filme já como uma experiência estética. E de estar com o corpo implicado aí. Estar no colégio Imaculada Conceição, na sala de aula fundamental para as sequências desse filme, ou no campo de futebol na Maraponga, sob um sol intenso que demandava um pano preto para fazer sombra sobre a câmera – uma cabaninha, junto à equipe de fotografia. Trata-se de experimentar um filme que se inventa, de acompanhar a decisão fundamental de onde estará a câmera, do que vai ser enquadrado, do que estará no fora-de-campo. Conseguir o momento exato para filmar, porque a nuvem passa, ora vem sombra, ora o sol se revela de novo: toda uma poética de espera das nuvens. Pensar como os sons do ambiente podem interferir no campo da cena. Saber como a luz vai banhar um corpo, como ela vai imprimir na imagem, como pintar com a luz e com as cores.

Pensar o filme que o processo inventa, e também o processo que o filme inventa. Isso quer dizer que estar em bastidores não implica obter informações, dados para poder falar posteriormente da obra em um suposto acabamento. É já a alegria marcante na constituição de História de uma pena que parece central, a preparação com música e com dança, o clima de festa. Atores pulam, balada pura. Há uma opção ética, estética e política por criar um espaço de compartilhamento, em que a equipe cria com. É toda a sensação de contágio grupal que pode ser desencadeada, toda uma perspectiva de horizontalidade que se coloca. A experiência de invenção é um jogo de corpos em contato, corpos que afetam uns aos outros, corpos que se experimentam e constituem uma sensação na imagem.

Estar nesse acontecimento de História de uma pena é uma experimentação, um tateio. Uma tentativa de sentir como esse cinema de Leonardo Mouramateus pulsa, buscando estabelecer interlocução. Imergir é acreditar que não existe uma crítica separada. Imergir para estar, efetivamente, implicado. Não se trata também de um caminho que se colocaria como do outro lado da maneira mais corrente de se escrever um texto a partir de um filme. Talvez existam outras maneiras de se entender uma imersão: afinal, também é possível imergir naquilo que se experimenta com o olhar e com o corpo na sala de cinema. A questão é como indicar uma variação possível, uma variabilidade que tenta elaborar outras condições para o pensamento. Fazer cinema e escrever sobre cinema como maneiras imersivas, de imergir no mundo, de impregnar-se nele, ser tomado por ele. O que talvez seja fundamental, quando se escreve sobre cinema, é estar contaminado. Não estamos sós, estamos com.

Uma versão deste texto foi publicada na edição de 23 de janeiro de 2014 do jornal O Povo.

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