RETRATO SEM MOLDURA
19 jun. 2018
Por Érico Araújo Lima
O retrato escapou da moldura, se agitou e ganhou corpo no espaço e no tempo. O retrato é um corpo vivo, é carne que irradia gestos, desenvolve relação. Vida, de Paula Gaitán, se dedica com delicadeza singular a investigar as expansões do retrato, as formas de composição e de incrustação das imagens com o mundo. É um filme que desenha todo um território sensível no encontro com o corpo da atriz Maria Gladys. É o retrato de uma artista, nas reminiscências dos tempos que são convocados, nas invenções do presente e das cenas que passam a existir diante da câmera. Logo no início, em meio a vários retratos da artista quando jovem, vem a imagem de uma moldura sem retrato. Há imagens por vir, gestos que vêm. Parece um plano que anuncia o próprio quadro que o cinema cria, ao mesmo tempo em que evidencia todo um fora de quadro que põe em jogo e em movimento a vida que se produz na travessia do filme. Porque não cabe preencher um quadro com um corpo ou com o mundo, mas fazer corpo e fazer mundo enquanto invenção de quadros moventes, permeados pela dinâmica do momento do encontro e do movimento das forças.
Pintar a figura, compor retratos. Os panos que se interpõem entre Maria Gladys e a câmera criam outra textura de imagem, aqui muito física mesmo, que passa pelo traço pictórico em penetração no gesto de cinema. Montagem de elementos dentro do plano, de um rosto com uma paisagem, de uma cortina com um rosto, da cor com a cabeça, e com a boca, e com a sombra, e com as linhas. A tela do retrato é uma superfície em que mais do que investigar uma psicologia de personagem, interessa o encontro sensorial que faz pulsar a vida. Pinta a cor, pinta a vida! A atriz declama poesias, narra histórias e também vai fabulando. Olhando-se nos espelhos, falando das cores do vestido que usava nos aniversários, lendo a agenda que faz de diário, ela costura a própria presença na espessura da imagem, como faz ao atuar nos filmes de Ruy Guerra, Júlio Bressane, Neville d’Almeida, Rogério Sganzerla.
E enquanto retrato, é preciso mesmo reinventar um gesto. Não se trata jamais de distanciamento nem de esperar a pose ou o momento certo para fazer uma imagem. A retratista mesma se transforma, ela se engaja e se implica num movimento, na cena e no limiar da relação. Em um texto escrito por Cláudia Mesquita a partir de Vida, a perspectiva do diálogo no retrato cinematográfico é central como horizonte de discussão. “São ‘retratos’, ainda, porque neles o retratista se implica; tematizando o processo de ‘retratar’, os filmes não se apresentam como cópias, mas como composição dos personagens segundo a perspectiva daquele que retrata e segundo a relação em que ambos (cineasta, personagem) se engajam”. Paula Gaitán conversa com a amiga Maria Gladys em algumas cenas, sugere que ela se observe no espelho. E a implicação da realizadora não precisa ocorrer apenas como a manifestação de uma voz ou de uma aparição concreta diante da câmera, porque é todo o filme que está se expondo na sua poética. Não como postura autorreferente, mas como aposta de fazer surgir a sensação, de extrair de uma luz e de uma cor a experimentação de um novo visível, de inventar na escuta da palavra a possibilidade de outra sonoridade, de criar uma ondulação a partir dos braços que se movem e dos panos que perpassam toda a escritura, de fazer da dança uma intensidade de energias em rodopio. Em tudo isso, existe um corpo da própria realizadora, assumindo que inventa mundos, multiplica cenas, prolifera sensibilidades.
Pintar um retrato, compor figuras. Existe sempre aqui mais um corpo fundamental e que interessa bastante nessa pesquisa de Paula Gaitán. É a presença de Maria Thereza Maron, filha de Maria Gladys. Desde o início, os rostos das duas são postos em relação, alternando-se e compondo um ritmo de oscilação. É uma física expressiva. As duas fumam, ora é uma que surge, ora a outra. As duas se reúnem num mesmo quadro, Gladys ao fundo, Maron na frente. As duas, finalmente, dançam, numa das mais belas sequências do filme, que já era anunciada em outros instantes como que por lampejos. E vamos para esse momento também por um princípio plástico e físico de relação entre os movimentos dos corpos de mãe e filha. Passamos do giro e dos braços abertos na imagem de um filme com Gladys para a performance de Maron no presente. O solo vira um dueto, dança livre da vida, com uma câmera que também dança – terceiro corpo presente – nos planos intensivos carregados da energia vibratória dos movimentos, embaralhados e tomados por um indiscernível jogo entre as figuras em composição na imagem. É quando quadro e corpos estão em jogo dos mais complexos, em perpétua inquietude, com toda a potência do encontro entre quem filma e quem é filmado.
Um retrato de Maria Gladys é tomado pelas mãos por uma criança na praia. Acompanhar o percurso do filme é sentir mesmo a vida tátil da imagem, é poder tocar uma imagem, perceber que ela constitui uma matéria sensível no mundo.
Maria Gladys é atravessada pela luz de um projetor no momento em que o filme convoca uma sequência de imagens de várias obras vividas pela atriz.
Acompanhar Paula Gaitán, Maria Gladys e Maria Thereza Maron nesses percursos é sentir o quanto as energias desses corpos singulares podem forjar em termos de uma experiência de mundo.
Maria Gladys não vai mais usar vestido amarelo.
Acompanhar um filme e uma vida que se constituem na modulação das imagens, no atravessamento da cena, na constante interpelação entre tempos.
Maria Gladys dança em O anjo nasceu.
Mais do que um retrato sobre a vida da retratada, o que se efetiva são camadas de vida sobre camadas de vida, vida sobre vida. O cinema se faz vida, experiência do viver. Retrato pictórico, cinematográfico, coreográfico. Retrato vital.
Maria Gladys se des-enquadra, a vida não cabe na moldura.
* Texto publicado originalmente em 28 de maio de 2014, no site do Alumbramento