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PEQUENO MUNDO PRÓPRIO

13 jun. 2018

Por Camila Vieira

Em suas reflexões sobre o universo infantil e o ato de jogar, o filósofo alemão Walter Benjamin afirmava que as crianças criam para si, brincando, o pequeno mundo próprio, rodeadas por um mundo de gigantes. Essa ideia ressoa com as narrativas de Ansiosa Tradução (2018), de Shireen Seno, e O Visto e o Não Visto (2017), de Kamila Andini. É curioso notar como são dois longas-metragens dirigidos por mulheres de países asiáticos distintos (a primeira das Filipinas e a segunda da Indonésia) e que escolhem uma menina para ser a protagonista da história. Mesmo com algumas aproximações, os desdobramentos são bem diferentes de um filme para outro.

Situado no final dos anos 80 no contexto pós-ditadura nas Filipinas, Ansiosa Tradução mergulha no mundo particular da pequena Yael, de oito anos, que permanece boa parte do tempo sozinha em casa, enquanto a mãe sai para trabalhar. Para administrar a solidão, a menina faz tarefas escolares, brinca de cozinhar com utensílios em miniatura, escuta repetidamente as fitas K7 com áudios enviados por seu pai e assiste à televisão, que exibe a propaganda de uma caneta com o slogan “for a beautiful human life” (“por uma bela vida humana”).

Após voltar cansada do trabalho, a mãe de Yael procura manter distanciamento da filha ao impor algumas interdições. A menina só pode falar 30 minutos depois que a mãe chega e, depois desse tempo, a mãe adormece no sofá, com a televisão ligada em um canal de telenovela. Yael também é proibida de escutar as fitas K7, que a mãe diz conter segredos. No entanto, Yael cria para si um pequeno mundo próprio. Alguns momentos do cotidiano parecem se transfigurar como o cenário melodramático da novela. Em outros, a caneta da propaganda ganha vida própria e ela até se dispõe a ir à loja comprar o objeto, sem muito sucesso. Se a rotina de Yael é de reclusão, ela irá encontrar nas imagens uma forma de interação com o mundo.


Enquanto Yael busca amenizar sua própria solidão em Ansiosa Tradução, Tantri, a menina de dez anos de O Visto e o Não Visto, precisa lidar com a iminência da morte do irmão gêmeo, Tantra. O longa de Kamila Andini guarda ecos com Shara (2003), da japonesa Naomi Kawase, não só pelo ponto de partida ser uma dramaturgia em que se desdobra o luto de um irmão gêmeo, como também pelo desejo de inventar imagens de um duplo desfeito. Se Shara trata do amadurecimento do luto no ambiente doméstico familiar, O Visto e o Não Visto é a antecipação do luto, posto que o menino Tantra encontra-se debilitado em uma cama de hospital.

Andini aposta na recorrência da imagem do ovo para figurar o duplo que se desfaz: Tantri esmaga o ovo quando vê seu irmão gêmeo no hospital; ela mastiga um ovo cozido e não encontra a gema. A dor da mãe só pode ser vista pela menina por meio das frestas da janela. No hospital, há uma divisão entre o que acontece dentro da enfermaria – os adultos que cuidam do garoto – e o que fica do lado de fora no corredor – a menina Tantri sentada.


Por meio da criação de diferentes universos míticos que se cruzam a partir da narrativa de um teatro de sombras, Tantri é capaz de ressignificar o mundo frágil da doença do irmão e do futuro anúncio da morte dele. Ela observa uma rinha de galos no cotidiano e logo se imagina brincando com o irmão, ambos montados com fantasias artesanais de galo, conduzindo uma bela coreografia que acontece em meio às camas do hospital. As cenas das crianças na floresta, emulando movimentos de animais, como babuínos e pássaros, também aprofundam a conexão entre o mundano e o espiritual, por meio de códigos que o olhar ocidental não consegue decifrar bem. Por outro lado, é justamente o enigma dessas imagens que dão força ao filme.

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