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Aracati (2015), de Aline Portugal e Julia de Simone

2 fev. 2016

Por Érico Araújo Lima

TRAVESSIA E ALTERAÇÃO

“E o que era, que estava assombrando o animal, era uma folha seca esvoaçada, que sobre se viu quase nos olhos e nas orelhas dele. Do vento. Do vento que vinha, rodopiado, Redemoinho: senhor sabe – a briga de ventos. Quando um esbarra com outro, e se enrolam, o doido do espetáculo” – Guimarães Rosa.



Percorrer a escritura de Aracati, de Aline Portugal e Julia de Simone, é sobretudo enfrentar algumas modulações, que convocam deslocamentos tanto nas relações entre a máquina e o universo filmado – alterações de postura, variações de gestos, desvios de rotas – quanto no engajamento afetivo do espectador frente aos desenhos coreográficos que a travessia vai solicitando. Perseguir o movimento do vento, essa tarefa incansável a que o filme se propõe, coloca, pelo menos, dois desafios fundamentais: primeiro, aquele problema básico de como tornar visíveis forças invisíveis (questão tão bem explicitada pelo Victor de Melo, diretor de fotografia, no debate sobre o filme em Tiradentes); o segundo embate diz respeito ao próprio contato com as bifurcações do percurso, com todos os ritmos variáveis e improváveis de uma trajetória, com todo os impasses da espera.


Ao primeiro desafio, o filme responde com uma expressividade das formas que tanto enfatiza uma poesia muda das coisas do mundo, quanto reinscreve na superfície da imagem uma tensão fundamental que desponta nas paisagens percorridas. Se os geradores de energia eólica presentes no litoral emergem violentos e imponentes, rasgando o horizonte, essa imensidão vai sendo cadenciada na cena e na montagem como atmosfera insólita: artifício tanto da situação mesma, quanto da fratura criada pelo filme, que recoloca o trabalho do espectador, levado a experimentar os tons de algo que se aparenta muito com um estranho mundo de foguetes espaciais. 


Desse lance primeiro dos dados, parte-se, então, para uma travessia que, estando às voltas com o espaço do sertão, não deixa de ser também mitológica, mágica, rosiana. A fábula do homem que convoca o vento com o canto vem justo reforçar esse clima misterioso que faz camada também pelas veredas do Aracati, vento e filme. Mas se esse universo mítico tem sua espessura na cena, não há como fugir do perigo do viver – o real vem bater à porta. É quando surge aquele segundo desafio, o das bifurcações, do impasse, das perfurações. Esse real não diz respeito a uma informação que estaria ancorada imediatamente no mundo vivido, porque o real não se trata de representação – pelo menos, segundo a tentativa de conversa que apostamos aqui. Ainda que estejamos, inevitavelmente, diante de um lastro social não plenamente explicado, como o das cidades submersas, da construção de barragens, dos deslocamentos de populações, há uma outra estratégia em conectar a expressividade plástica das paisagens aos mundos outros que reverberam uma pulsação de conflitos.


Eis aqui também aquela bifurcação que pouco a pouco parece se dar no âmbito do engajamento do espectador. Se, por algum tempo, o filme parece nos solicitar uma postura mais cadenciada pelo acompanhar das paisagens e das atmosferas, ele logo passa a nos cobrar outro gesto, quando alguns encontros imponderáveis começam a acontecer e a tomar o filme de surpresa. O real rasga a escritura justo nos volteios do vento, na entrada de um cavaleiro em quadro, na cobrança que alguns encontros fazem para uma aproximação mais radical – ainda que seja para abrir uma espécie de parêntese, no qual um instante de leitura na casa de um dos personagens passa a se embrenhar no filme. Parece que justo nesses contatos com os sujeitos filmados, Aracati torna-se especialmente carregado de intensidade, sobretudo por algumas escolhas fundamentais de montagem, que fazem da duração integral de um plano a exposição completa de um encontro imprevisto.


Ao mesmo tempo, um filme é ressonância entre as partes e não pode, simplesmente, ser fragmentado em momentos de maior ou menor intensidade. É como se, então, a aparição desses sujeitos na cena nos levasse mesmo a retraçar o percurso feito até ali, a repetir e a reelaborar a organização tramada com as paisagens. Como se esses encontros gerassem uma espécie de inflexão reflexiva sobre a própria travessia. Isso parece, particularmente, central no encontro com seu Alvanir, o homem que pega o chapéu carregado pelas forças do vento. No decorrer de toda essa conversa, somos colocados na prática da escuta de uma palavra e de um saber singulares. Há no olhar dele um modo especial de se relacionar com todo o mundo filmado até ali e mesmo de formular conceitos muito próprios sobre o cinema e sobre o jogo da representação. Provocador, ele chega a dizer que se o vento não fosse tão importante, não teria sentido fazer um filme sobre ele. E atingidos por esse pensamento, somos obrigados (espectador e filme) a nos reorientar por algumas rotas, especialmente quando parece haver naquela sensibilidade uma percepção muito particular dos modos de extrair poesia das coisas do mundo.


É quando parece ser possível pensar no jogo complexo de distância e de aproximação que existe entre o projeto mesmo do filme e a densidade das vidas filmadas. Essa sensibilidade outra encontrada em Alvanir opera diretamente no gesto de fazer cinema e redimensiona o próprio lugar do filme naquela busca pela expressividade das paisagens e das atmosferas. Ao colocar como tão evidente a necessidade de filmar o vento, ele nos faz acreditar na possibilidade de se formar um espaço comum entre o cinema e o mundo filmado, mas sem apaziguamentos, sem atenuação das diferenças. Alvanir retraça algo como as próprias condições de possibilidade do cinema ali, naquele universo, e marca uma hospitalidade frente à máquina, para que ela possa se introduzir em seu mundo, ser acolhida por ele. O filme parece, então, se colocar a uma altura sensível do filmado: tanto um quanto o outro, cada um à sua maneira, percebem no vento uma matéria expressiva para uma elaboração poética. Aqui algo se altera no intervalo entre dois mundos – experiência fundamental da alteridade e do real como alteração –, ainda que também uma distância se mantenha. Uma ligação não pode se dar como harmonia.


Emblemático de uma espécie de limiar que permanece por ser tensionado é justo a hesitação no gesto de recuperar o chapéu. A mão sai do antecampo com reserva e retoma o objeto que voou da cabeça. Só vemos a mão. Uma linha continua separando algo ali. Porém, mais do que pensar aqui o que poderia se dar no calor do plano ou como os gestos poderiam ser engajados nesse instante, talvez seja muito mais interessante perceber nessa reserva, nesse titubear, justo o inquietante desafio da composição de um mundo comum entre aqueles que são postos em relação, vindos de mundos heterogêneos.


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