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FILMAR COMO QUEM DESEJA

Uma fábula para Eldorado (2015), de André Moura Lopes
Aurora de Fuji (2014), de Rafael de Jesus
Tirarei as medidas do seu caixão (2014), de Diego Camelo

3 ago. 2015

Por Érico Araújo Lima

Se existe algo como um arquivo imaginado do cinema, ele só faz sentido quando é
posto constantemente em movimento, para ser tornado, a todo instante, um corpo
vivo, um corpo plástico constituído pela modulação de memórias e esquecimentos,
capaz de fabricar, em retorno, uma multidão de outros mundos imaginados. Numa
imersão inventiva dentro de um cinema como arquivo, o desafio é transformar
essa matéria de imaginação em um terreno comum a ser experimentado de
maneira singular, a cada nova estratégia fílmica que emerge. Fazer com que um
filme aconteça ganha, então, uma vitalidade urgente, quando se trata de filmar com
desejo, de desencadear um pedaço de mundo cinematográfico a partir do cinema
que engaja afetivamente o próprio corpo.


Esse horizonte de mirada possibilita uma aproximação aos gestos dos três filmes
postos em diálogo nessa edição do Cine Caolho, que dispõe para a partilha com
uma comunidade de espectadores um bloco múltiplo de vontades de cinema.
Talvez, mais do que produtos acabados postos a circular após etapas de uma
fabricação industrial, esses trabalhos sejam gestos que transportam gestos, tanto
no que projetam rumo a um porvir, quanto no que convocam de uma
reminiscência do próprio cinema. E esses gestos atirados corajosamente ao mundo
revelam um interesse muito forte em constituir fábulas para a vida nesse mesmo
mundo, para conseguir sobreviver nele. Desejo pela fábula, atração pelo cinema. Tudo isso pode fazer surgir uma jangada no meio de uma fuga, ou pode viabilizar
uma metamorfose de si, para solucionar uma intriga final, no limiar de um
combate. Mas também não há reconciliação possível: as histórias – todas elas, do
cinema, dos filmes, do mundo – permanecem abertas. Produzir imaginação, seja a
imaginação política das utopias de um futuro para o País, seja a imaginação do jogo
com espadas, cores, quimeras, seja ainda uma imaginação que convoca um cinema
de sombras para se relacionar com o mundo vivido, eis um trabalho da ficção que
se empenha em abrir possíveis, em ventilar sensibilidades, mas sempre na beira de
uma indeterminação quanto ao que podem os recursos expressivos dessa máquina
misteriosa que se chama cinema.


Elemento emblemático desse impasse da potência do cinema é o próprio lugar de
deslocamento social que adquire o personagem de Tirarei as Medidas do seu
Caixão, de Diego Camelo. Talvez seja esse filme o que figura de forma mais explícita
o próprio cinema como ativador do imaginário, da produção de subjetividade e da
relação entre sujeito e mundo. O olhar para a imagem do cinema, para o cinema
como arquivo do terror e da assombração, se transforma no catalisador de uma
prática num fora da imagem. É um desejo de se fazer outro, de fazer de si um ser de
cinema, que a cena do filme inscreve como deambulação de um cinema encarnado
no corpo. A ação de um rosto diante da imagem se transforma na ativação de um
gesto pelo mundo. A paixão pelo cinema – o pathos expressivo que esse cinema
pode imprimir num rosto e num corpo todo –, essa paixão se converte em deriva
pela rua, em uma errância que não se enquadra na moldura social. O mundo rejeita
esse desvio pela imaginação, e é o próprio cinema que vem tragá-lo para a terra,
para junto de si.


Tirarei as Medidas do seu Caixão adquire ao mesmo tempo um tom de homenagem
ao universo de Zé do Caixão e de jogo com ele. Não estamos diante apenas da
emulação estilística de uma maneira de fazer cinema, mas, sobretudo, diante de um
filme gerado por cinema, assumido como tributário de um outro, numa
contaminação que se imprime no próprio olhar de uma criança. É como se uma
cena se dobrasse sobre outra, e o desejo pela fábula fosse encenado como um gesto
de transmissão, a chave para um arquivo de cinema entregue sob a forma de um
presente em VHS. Olhar uma imagem é já restituir ao corpo a potência de encarnar
o trabalho da imaginação, especialmente ao corpo do próprio filme. E nessa relação
livre com a imaginação de outros, talvez esse filme de Diego Camelo se transforme
não apenas em um gesto de reverência, mas possa também apontar para uma
condição mais alargada do que é gestar um cinema, do que é suportar um mundo
de imagens nas costas, já que concretamente – a própria encenação demonstra –
aquilo que nos envolve cotidianamente parece demasiado árido para acolher a
faculdade do imaginar.


É também em meio a uma aridez, mais especialmente em meio às ruínas de um
país rendido a forças conservadoras, que André Moura Lopes cria Uma Fábula para
Eldorado, em que as figuras históricas e políticas se tramam, uma vez mais, com a
memória do cinema. É como se fossem reencenados os embates entre as formas do
cinema e as formas da revolução, entre os projetos de um cinema moderno e as
tentativas de dar outras formas ao próprio País. Aqui a cena complica a relação
com o presente, que se torna mais desconectado e aberto, em um tempo que já não
pode ser condensado em um momento histórico mais específico. No entanto, é
efetivamente um desejo de história que está rondando a fábula, e esse desejo quer
lidar com o destino das revoluções, com esse tempo futuro do inaudito, projetado
em meio à melancolia do presente.


Numa fábula que tem por moldura evidente o paradigma de acontecimentos
encenados em Terra em Transe, parece que somos jogados para a deriva de uma
ficção em múltiplas camadas. Fábula sobreposta a outra fábula, há pelo menos
duas superfícies coengendradas aqui: uma ficção da ficção do filme glauberiano e
uma ficção da ficção dos embates revolucionários no mundo vivido. Ficções ao
infinito, muitas cenas que se sobrepõem a outras tantas. No filme de André Moura
Lopes, uma opção dramatúrgica se afirma como chave para a singularidade de seu
gesto. As movimentações da grande História permanecem, à exceção do prólogo
inicial em animação, no fora-de- campo, e a trama do filme vai se dar muito mais
com as vidas clandestinas, escondidas – em fuga, para resistir. Nesses espaços
afastados, nos quais se encontra um abrigo provisório, o recurso à palavra é
central, para mover os jogos que se estabelecem, para elucidar os eventos do
extracampo e do passado, e ainda para trazer à tona os discursos sobre os
caminhos das revoluções.


Existe certa analogia estrutural entre os jogos de bem e mal em Aurora de Fuji, de
Rafael de Jesus, e Uma Fábula para Eldorado, uma estrutura ficcional que, sem ser
equivalente, incorpora um esquema moral semelhante para mover suas fábulas. No
pano de fundo de ambos, há um mundo à beira do colapso. Se essa é também a
base dessa obra de imaginação ainda mais livre de um contato com o real, agora as

chaves da ficção abrem outros portais, e o artifício se assume com toda presença. A
lógica da fábula do cinema não é contrariada, mas justo potencializada pelos
recursos expressivos, por um esforço de decupagem bem organizada, por uma
tentativa de narrar uma experiência imaginada, que se trama com o arquivo de
cinema das fantasias e das forças mágicas. Aurora de Fuji leva adiante os interesses
já apontados em Quimera de Alesha, filme anterior dirigido por Rafael de Jesus,
numa continuação não apenas narrativa, mas, sobretudo, das inquietações de uma
pesquisa de realização. Há um gesto em metamorfose nessa travessia que se
investe de perto pelas estratégias do anime, pela lógica do duelo entre contrários e
por uma figuração dramática que é cifrada como universo mítico, e com base nas
táticas dos efeitos especiais.


Esses corpos que estão em cena ganham um novo estatuto com a magia da ficção.
Ora vemos um corpo luminoso que é convocado de outro mundo para falar com os
vivos, ora um corpo se singulariza em relação à paisagem, para intensificar o
momento dramático de uma irradiação de poder. No mundo da imaginação
materializada via artifício, os corpos dos personagens e o corpo do cinema se
transformam em terreno manipulável com absoluta liberdade, embora também
com certas regras internas, fundadas em um pacto silencioso com um terceiro
corpo, o do próprio espectador. Produzir auroras e quimeras tem a ver aqui com
uma vontade muito concreta de fazer um cinema que dá lugar à irrupção do
maravilhoso, ao mesmo tempo uma forma para conjurar alguma dimensão de
realismo, mas também uma maneira de se conectar com uma parcela da catástrofe
presente em nosso mundo.


Se couber aqui propor, finalmente, um desafio para esses gestos fílmicos postos em
partilha, valeria também pensar como fazer um uso livre dessa memória de cinema
que tanto mobiliza e engaja, para desviar dos mundos já vistos, já criados e
esquadrinhados. Fábulas para o cinema, eis uma operação criadora que talvez
possa ser colocada como um porvir contido nos arquivos de cinema. A fábula para
é uma figura de endereçamento. Lugar da fabulação criadora, o cinema se faz com
os arquivos que o constituem e também com as experiências de corpo, de cidade e
de vida dos sujeitos que dele se apropriam.


Essa misteriosa máquina de fazer imagens e sons é potente em mover uma
história, em aclimatar as instâncias da intriga e, sobretudo, em despertar outros
desejos: por mais cenas e mais derivações fabulares. A vontade de cinema que
perpassa essa sessão se mistura a um potente desejo de ficção, de constituir uma
força agregadora de formas, figuras e sensações capazes de operar relações
inesperadas entre o vivido e o imaginado. Possivelmente essas operações podem
emergir tanto mais potentes quanto mais elas partam também de certo recuo
desse arquivo de cinema, para dele adquirir certa autonomia, para levá-lo menos a
sério e poder fazer dele um novo uso. É sempre importante desconfiar um pouco
do cinema, por mais canônico que ele seja, para também jogar e brincar com ele.

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