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Aquilo que fazemos com as nossas desgraças (2014), de Arthur Tuoto

29 jul. 2014

Por Érico Araújo Lima

AQUILO QUE AS IMAGENS FAZEM

O trabalho da montagem convoca a um movimento pelas imagens que são postas em relação. Estamos a todo o momento transitando, percorrendo lugares e tempos, na medida em que o fluxo de uma imagem a outra se processa. É como uma curadoria – e a curadoria é como uma montagem. E então mais do que estar simplesmente diante de imagens que desfilam na nossa frente, há também uma virtualidade, a do corpo em movimento em contato com esses outros corpos que também são postos em contato. É já evidente que Aquilo que fazemos com as nossas desgraças, de Arthur Tuoto, se constitui fundamentalmente como montagem, remontagem e desmontagem, cesura de relações, descesura e perturbação de mundos. E o que dessa imediata dimensão do trabalho do filme pode se extrair é uma medida de performatividade da imagem que se coloca em jogo. Porque se alguns elementos de afinidades com trabalhos de Godard, por exemplo, são logo claros – já lançados nos procedimentos ensaísticos tanto quanto no recurso à faixa sonora de France/tour/detour/deux/enfants (1977), série de televisão de Godard e Anne-Marie Miéville – talvez seja possível colocar em movimento algumas das singularidades das operações aqui em jogo, que podem ser situadas nos intercâmbios com o campo das artes visuais e da arte do vídeo.


Por essa dimensão performativa, podem-se entender muitas coisas, ora mais próximas, ora mais distantes entre si, e existe todo um conjunto de teorias que exploram mais detidamente o aspecto conceitual dessa questão. Mas na tentativa de pegar mais nas imagens que o filme de Tuoto joga para nossos corpos, seria possível ensaiar que há um gesto performativo no ato mesmo do percurso dessas imagens pela tela, nos arranjos que elas tecem e nos mundos que elas constituem ao já executarem todo um movimento material. Essas imagens tornam-se agentes de territórios sensíveis, corpos moventes postos em variação, irradiadores de presenças e de temporalidades. Existe como que uma oscilação, uma curva construída no curso do filme. A montanha russa que surge em um dos momentos parece dizer muito de uma rítmica do movimento gestual das imagens ao longo de todo o filme. São mergulhos intensos em blocos de duração, em acontecimentos, em energias. E também são interrupções, cortes na continuidade, digressões para uma outra história, como se pode ouvir constantemente nos diálogos retomados na experiência sonora.


Os atos de fala que surgem das conversas modulam as variações imagéticas, marcando muitas vezes pequenos blocos internos que podem ser localizados no fluxo. E uma música vem constantemente acentuar transições, conferir à linha que se traça uma espécie de desvio, que não deixa de ser também um desdobramento do pensamento, uma inflexão na linha para que ela torne a produzir movimento. Podemos ver todo um universo de imagens mais ligadas ao capitalismo, às bolsas de valores, ao capital financeiro, enfim. Outros blocos também parecem se anunciar, com processos de luta em jogo, com imagens da prisão, com a pulsação também dos embates nas ruas captados pelas câmeras nas manifestações recentes. E há ainda todo um percurso por imagens da vida cotidiana, de famílias, de mundos privados, numa camada de memória que vem também compor com a escritura, introduzindo, inclusive, outras matérias sensíveis. Nessas travessias que o filme faz aparecer, há um gesto também do analista, um gesto que vem, sobretudo, na forma videográfica, para fazer a análise das imagens, perscrutar as suas histórias, interrogar a respeito dos seus vestígios.


É uma operação que não cessa de remeter também ao seu próprio mecanismo – novamente, então, uma gestualidade que seproduz, e se produzindo, se expõe: performa a própria exposição. Há uma aproximação aqui com o procedimento de Filme Selvagem, de Pedro Diógenes, que foi exibido em mesma sessão da Mostra Cinema de Garagem, num gesto de curadoria bastante atento aos modos de trabalho dos dois filmes. Tanto em um quanto em outro, o gesto do vídeo é agenciador de imagens críticas. São duas investidas políticas contra o espetáculo, estabelecendo tensões com as formas de sustentação do capitalismo, tanto com aquilo que o sustenta materialmente quanto com todo o universo sensível que a ele se atrela, todos os seres que acompanham os monstros, para retomar livremente um das passagens da transmissão remontada pelo filme de Tuoto. Nesse sentido, há uma busca comum em pesquisar uma política da imagem, apostando no gesto de pôr em crise todo um mundo de visualidades, desmontando-as, jogando com elas, encontrando nelas alguns dos mecanismos que lhes servem de base, para a partir daí também inventar outros fluxos possíveis.


Nessa pesquisa, Aquilo que fazemos com as nossas desgraças atinge uma zona de instabilidade bastante potente, ao promover encontros e o desfazimento de uma centralidade, rumo à proliferação de pontos de vista. Se o filme pode ser tratado como um trabalho de um homem só, parece ser acima de tudo um filme em que os próprios se quebram, o um só e o cada um se misturam, para dar espaço a uma impropriedade, em torno da qual algo de comum pode se constituir. Essas imagens reunidas na mesa de montagem passam a compartilhar um território e deixam de ser de um só para potencialmente dizer respeito a todo mundo. O único momento em que o trabalho de mediação do realizador ainda se anuncia de forma explícita é na assinatura final, mas a mesa compartilhadora das impropriedades parece contaminar boa parte do filme. E nesse aspecto, seria possível indicar uma aproximação mais forte com Harun Farocki, em certa medida mais dissolvido ainda de uma pessoalidade do que Godard, que carrega sempre uma preocupação forte em marcar o próprio gesto e mesmo a própria presença física nas suas obras – que, justo por essa postura, talvez ainda levem muito a essa denominação de “obra”.


Esse espaço de partilha de várias sensibilidades se materializa tanto em imagens quanto na ausência delas. A tela negra que tudo envolve faz com que um espaço se potencialize para reverberar no porvir. Como se mais imagens também estivessem em gestação. A tela negra pode, em alguma medida, ser o que a tela branca se constituía num trabalho como o de Nam June Paik, Zen for film. Mas agora mais intensamente um escuro do vídeo. A própria potência da linguagem por se fazer. André Brasil já discutiu em um texto a relação entre a tela branca e a ideia de origem, cruzando esse mesmo filme de Paik com outros três trabalhos, Scénario du film Passion, de Jean-Luc Godard, Onde jaz o teu sorriso?, de Pedro Costa, e ainda o projeto fotográfico Theatres, de Hiroshi Sugimoto. Pode ser um tanto temerário aqui simplesmente assimilar o trabalho de Tuoto a esse campo de investigação, já que parece fundamental ter em vista também as singularidades do que o filme aponta. Mas é, ao mesmo tempo, um conjunto de trabalhos – e também um campo de discussão – que parece traçar justo um terreno comum de preocupações, tanto no procedimento da pesquisa ensaística quanto na dimensão performativa do que a tela passa a constituir. A tela negra que demanda também toda a imersão do espectador, este que não cessa de trabalhar diante do turbilhão. Diante de uma festa que faz as luzes piscarem, os corpos se embaralharem, as cores tremerem. Diante de uma longa sequência em que as imagens de câmeras de vigilância mostram toda uma movimentação frente a algo que a imagem não revela: para onde olham aqueles corpos? De que eles correm? Diante de tudo isso, um espaço que se abre para o pensamento.


“Vamos falar sobre a propriedade. Ou apenas sobre janelas de casas”, diz a voz off logo no início do filme. Tirar uma imagem para a luz. É um jogo entre a luz e a escuridão. É preciso uma duração específica para que a imagem surja, porque a partir daí, ela volta ao negro. Um rosto surge, no começo e no final. Ele transborda a janela. Na experiência do fluxo, variam os quadros e os gestos de filmar. Várias janelas dentro da janela do cinema. Em alguma medida, é como se o filme fosse também uma instalação em potência, porque ele já é expansão dos limites do cinema no próprio cinema. O que surge na tela? A imagem tornou-se inseparável do seu devir. Ela faz mundos. A tela do cinema pode ser tornar um lugar potencial para que formas de vida se constituam. Talvez se trate aqui de uma política performativa da imagem.

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