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APRESENTAÇÃO

Talvez fosse possível começar dizendo que este texto é tentativo e tateante. Isso porque não se trata de apresentar o Sobrecinema dentro de uma dimensão programática e definidora de diretrizes. Gostaríamos aqui de fazer quase um ato de reminiscência de gestos que animam nossa prática de escrita. Nesse mesmo ato, talvez possamos expor ao leitor alguns modos de escritura que nos interessam como horizonte, como constante pesquisa, desafio e experimentação, partilhados aqui, em uma dimensão provisória e precária. Talvez possamos fazer deste texto uma espécie de partilha processual, aberta, de algumas energias que têm nos encorajado a escrever críticas. Levantamos aqui, então, algumas suspeitas de base a respeito do nosso modo de estar na companhia do cinema, algumas apostas para o fazer da crítica.


De saída, tentamos nos desvencilhar de uma abordagem que tem por primado a recomendação positiva ou negativa de um filme para o consumo. Tomamos uma distância dessa abordagem, porque nos parece importante extrair outras consequências de uma imagem e do ato de ver um filme. Para além do gesto valorativo, temos tentado – e gostaríamos de seguir nisso – a investigação de modos de estar com os filmes que não os reduzam a objetos para uma indicação. Travamos com os textos essa aposta, para que não se esgotem na descrição valorativa, gerada, talvez, pelas circunscrições das próprias dinâmicas de altas velocidades, em alguns contextos de trabalho. Pois essa conjuntura de escrita da recomendação talvez esteja marcada também pelos constrangimentos temporais e econômicos tão caros ao capitalismo contemporâneo e às lógicas industriais de cinema e de crítica, que parecem exigir, a todo instante, respostas rápidas e diretas – polarizadas, como nos lembra uma emblemática iconografia de textos jornalísticos, entre o aplauso do espetáculo e o cochilo no assento.


Pensando ainda o problema da crítica associada à dinâmica da valoração e da recomendação, a intenção seria menos de se opor a um determinado lugar onde tal prática se torna mais visível (como o jornalismo impresso). Tal como os veículos mais tradicionais de informação e comunicação, novas plataformas que se popularizaram com a internet (redes sociais, vídeos no youtube, podcasts) também costumam proliferar a circulação de opiniões rápidas e ancoradas pela lógica do consumo. É claro que em cada meio, há exceções. Portanto, não parece que o gesto aqui seja atacar espaços diferentes em que se faz a escrita sobre o cinema, mas compreender quais abordagens estão em jogo diante de uma suposta crença na democratização das falas, que, se por um lado, podem ampliar olhares diferentes em torno do cinema,  por outro, podem cair na cristalização de discursos semelhantes e homogêneos, que apenas reforçam a polarização da qual o Sobrecinema pretende se distanciar.


Junto a essa distância da lógica do consumo, interessa-nos também colocar o constante desafio da necessidade da crítica como crise e como conversa. Tem sido caro a nossos gestos uma constante reflexão sobre como é possível, num mesmo ato, travar debates e construir um zona de interlocução, colocar-se em meio ao mundo em movimento, na tarefa coletiva e ampliada de fazer os desdobramentos das questões mobilizadas pelos filmes. A questão que se agiganta para nós é justo como colocar-se diante de um filme e do espectador, lançar pensamentos para o debate, numa postura de quem trabalha junto ao fluxo de uma conversa, da qual a própria crítica faz parte, um momento a mais, como tantos outros.


Sem abrir mão da tarefa de colocar em crise o mundo visto e escutado, parece-nos que um desafio da crítica é reconhecer-se como se inserindo em um mundo povoado por outras vozes, múltiplas e em movimento. Dizendo um tanto mais concretamente: é central, a partir dessa aposta, evitar toda postura de esclarecimento sobre um filme, de explicação, de decifragem daquilo que o espectador, supostamente, não poderia ver. O gesto da crítica deve ser feito com uma crença radical nas potências do outro, tomando como premissa fundamental uma igualdade de capacidades na relação com o cinema – este que parece ter construído muito de sua história gerando distâncias e criando um ar de extraordinário. Na proposição de uma crítica, seria preciso desdobrar um filme justo na contramão da excepcionalidade, tanto da experiência de cinema quanto na própria ação da crítica. O fazer da crítica poderia tomar como questão a possibilidade de acionar um espaço de desejo em que cada sujeito se sinta acolhido e engajado a também expressar seus modos de colocar o visível em crise, em debate.


Mesmo na abertura da conversa, é possível encontrar brechas para enfrentamentos e dissensos, sem que a ponte se inviabilize. Pensar a escrita em torno do cinema a partir das igualdades de capacidades entre o crítico, o realizador e o espectador não implica necessariamente em aliviar tensões ou amortecer pontos de vista. Não há como ficar indiferente a filmes e modos de produção, que explicitam estruturas de poder em que há desigualdades basilares. Nestes casos, talvez o desafio seja compreender como enfrentar o mal estar de um certo modo de fazer cinema, sem se deixar seduzir pelas polarizações, mas estando aberto a encontrar nuances.


Nessa linha, tomaríamos alguma distância de uma concepção mais romântica da crítica, que poderia conceber a escrita como o trabalho de alguém que, num gesto solitário, se refugia do mundo para elaborar posições sobre uma obra. Noutro movimento, proporíamos a crítica como uma tarefa povoada, submetida ao rosto do outro, à voz do outro, aos tempos de uma comunidade. E ela se envia ao mundo, desejosa de mais escuta. Como uma carta, a crítica é sempre um envio – e que seja ainda uma carta sempre à espera de muitos reenvios. Criação de um espaço coabitado, ela poderia se fazer com a consciência de que qualquer um pode ocupar essa posição. Eis outra aposta: a crítica talvez possa ser uma posição transitória, sempre tomada por uma indeterminação constituinte e por um vazio que permite a variação de ocupações, a circulação dos lugares, a criação de uma zona de trânsitos.


Estou proponente de uma crítica, no momento mesmo em que a escrevo e a envio. Dizendo isso, gostaríamos de propor o cuidado para que a crítica não pareça uma missão de pessoas esclarecidas que se relacionaram, de algumas maneiras, com certas histórias das imagens ou com qualquer outro repertório de análise, das naturezas mais variadas. A crítica seria muito mais uma situação, que todo espectador poderia se sentir convidado a experimentar, segundo maneiras singulares. Da mesma forma que o cinema é atravessado pela enunciação de vários sujeitos, talvez a crítica também precise se colocar, urgentemente, nessa reflexividade ética e política, questionando-se a todo momento, pensando seus limites, se interrogando sobre como pode se fazer mais aberta, para contagiar o outro a colocar a palavra em trabalho sobre o ato de ver uma imagem.


O cuidado de não se colocar em um pedestal implica também perceber que o lugar da crítica não é apenas o da relação necessária com uma história do cinema que já foi legitimada e canonizada. Ser proponente de uma crítica é poder também reposicionar seu olhar para filmografias invisibilizadas, seja por enfrentar dificuldades de circulação ou por serem menosprezadas como propostas que não se encaixam dentro dos cânones. Olhar para outros cinemas, estar aberto a novos mundos inventados, colocar em relação com o que é diferente e escolher falar a partir do que nem sempre é imediato também são algumas de nossas preocupações com o Sobrecinema.  


Tarefa complicada, certamente, e que nos coloca diante de inúmeros desafios, limites e mesmo contradições. Mas poderíamos talvez recuperar sempre uma situação fundamental na experiência de cinema que pode ser tão transversal aos nossos lugares de espectadores: aquele da saída da sala, quando estamos submetidos ao que a tela do cinema nos apresentou. Seria possível conceber um texto carregado do sabor que envolve uma conversa logo após a sessão de cinema, em que se tenta, junto com o interlocutor, estabelecer relações com o filme visto – de distância, de aproximação, de problematização, de engajamento? Como resgatar, na experimentação da escritura, essa elaboração mesma da conversa, sempre frágil e em movimento, sempre aberta e porosa, sempre atravessada pela força criadora das pausas, pela escuta do outro, por aquilo que ela faz surgir como outras possíveis entradas, diante daquilo que o corpo experimentou na sala de cinema? Como o gesto de escrever pode também estar submetido à necessidade do rever – a partir dos nossos próprios olhos, mas também a partir das provocações do olhar e da palavra do outro –, essa atividade que é sempre tão fundamental para o reposicionar? Eis uma busca: talvez pudéssemos investigar, constantemente, uma escrita que tente se contagiar mais pelo sabor das hesitações e pela frequentação do gaguejar.


Nossas apostas aqui dizem respeito a um convite para o pensamento, ligado a um processo em elaboração constante. Em alguma medida, a questão é como buscar tons e timbres para uma escritura, aspecto que nos parece central, especialmente, para investigar os modos de intervenção da crítica numa cena de discussão, na tarefa constante de interlocução com a pesquisa feita por um filme – com sua equipe de realização, sua conjuntura de produção, suas proposições ao mundo – e com uma comunidade de espectadores. Nosso esforço se dirige à elaboração de posturas que tenham por diapasão, mais do que tudo, o gesto operador de crises vindo de todo espectador. Para além de qualquer modéstia da escrita, submeter nossas críticas à operação das intermitências e a uma variação de posições talvez seja um gesto de ocupação do mundo que é sempre também acompanhado pela necessidade de estar à escuta.

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