Corações Sangrantes (2014), de Jorge Polo
8 fev. 2015
Por Érico Araújo Lima
OCUPAR, MOVER-SE
“E aí, gente, vamo invadir essa parada?”. Corações Sangrantes é um filme de ímpeto. Existe uma vitalidade singular nesse curta de Jorge Polo em convocar amigos para um experimento de aventura. É preciso um empenho do corpo e do cinema para transformar a ocupação de uma parada em todo um modo de ocupar uma cidade. A personagem convida os amigos para uma ação: deslocar o corpo da rua para dentro de um prédio antigo e fazer daí um lugar possível para as vidas de cada um. O braço se ergue e aponta para o alvo. No plano seguinte, todos os companheiros escalam paredes, transpõem muros, projetam os corpos para o interior do espaço desconhecido. A palavra e as mãos fazem o convite, a cena fílmica torna a ação imaginável: imbricação completa de uma ocupação concreta, vivida, e de uma ação de cinema. O filme ocupa a casa para fazer desse gesto uma habitação do mundo.
Nesse cinema de ocupação, a cadência das cenas é mediada por uma camada fundamental, que corresponde a um atento estudo do movimento. Fazer o trânsito entre dentro e fora requer deslocamento. E o investimento do corpo na empreitada de traspor muros demanda um dispêndio de energias, liberadas na alteração entre os estados de relaxamento e de atividade. Corações Sangrantes é um filme extremamente físico, em que as experimentações das formas se dão em profunda contaminação pelas forças dos estágios corpóreos dos personagens. Entre a rigidez dos corpos enquadrados na tentativa de um rigor de composição e a liberação das movimentações em espalhamento pelo quadro, o que a imagem nos dá a ver é uma ininterrupta elaboração de uma física dos corpos.
Esse trabalho junta, a todo o momento, a necessidade de ocupar com a importância de mover-se e encontra, sobretudo, na dança sua força maior de expressão. Se logo no primeiro plano do filme, somos jogados na tonalidade de movimento que irá prevalecer ao longo de toda a projeção – um movimento desordenado, que parte da singularidade dos gestos de cada ator –, é quando já estamos no casarão que nos deparamos com o ponto de culminância da dramaturgia desses corpos em agitação. A presença da música, decisiva ao longo de todo o filme, marca o compasso da cena e também explicita o próprio motivo melódico desses corações sangrantes. Ouvimos Bleeding Heart, e a coreografia que se desenha é uma composição de corpo, de ritmo e de figuras em íntima relação com a banda sonora inserida nesse momento.
O plano recorta o espaço da cena, circunscreve as bordas e, ao mesmo tempo, condensa a intensidade de um jogo alternado entre dança grupal, dança solo e dança em dupla. É como se no campo aberto para o preenchimento das figuras, houvesse um mútuo resvalar entre a modulação de vozes e sons da canção e a própria maneira de um e muitos fazerem sua presença em cena variar. Mais do que um espelhamento entre a enunciação das palavras na música e a narrativa mínima contida em Corações Sangrantes, o que parece vir à tona, como pregnância de mise-en-scène, é o próprio trajeto sensível que surge nos encontros entre as corpografias e os arranjos sonoros. A costura dramatúrgica da ocupação do corpo no espaço e no quadro enfatiza que um lugar ganha vida quando contaminado pelo próprio vitalismo dos seres que o ocupam. Dançar passa a ser um modo de estabelecer relação com o próprio corpo, com o corpo do outro e com o corpo de um espaço. E mesmo com um corpo fantasmal que surge. Nessa trama dos movimentos em reverberação, há todo um trabalho de perceber entradas e saídas no quadro, por meio dos corpos que se associam e dissociam diante de uma parede em dupla cor.
Esse plano decisivo de Corações Sangrantes, agregador de vetores dentro da estrutura do filme, vai desdobrar-se em outras cadências, quando no prosseguimento da música, são mostrados os cômodos vazios da casa, paredes em que são vistas inscrições gráficas, como rastros deixados pelo tempo. Nessa varredura dos cômodos, como num inventário de cada canto do lugar, as corporeidades dissonantes que imergiram no casarão se integram às próprias paredes, traços, escadas e portas desse espaço. As sombras também dançam, impressas fugazmente nas superfícies do prédio. É como se fosse possível também dançar com a própria presença física dessa entidade que ganhou vida ao longo do filme. De alguma forma, o gesto de trazer um fantasma, o espectro que opera transportes entre mundos diferentes, é também uma maneira de fazer a própria casa se consolidar como um ser.
Progressivamente, o caráter de palco para receber os que vêm de fora se transfigura em uma figura de produção por parte desse ser aparentemente inanimado, feito de concreto e ruínas. A casa agencia e modula ativamente os corpos dos ocupantes e a própria maneira de filmar. Nesse gesto recíproco em que os lugares se permutam, o plano fixo dos corpos em movimento cede lugar à panorâmica que conecta a rigidez dos corpos estáticos a um fragmento de cidade. Uma enormidade de janelas olha para aqueles corpos fixos que compõem uma espécie de tableau.
Não basta operar a construção formal rigorosa da pose, porque o filme teima em se arriscar e em firmar algo além da pura citação cinéfila. Mesmo atravessado aí por uma parcela de referências, o que importa efetivamente é a operação singular de como fazer com esses atores, com esse lugar da cidade e com esse momento cinematográfico uma experiência de conexão sincera com o mundo. Fazendo a câmera se movimentar, o filme se permite mesmo uma infiltração mais forte com um fora. A cidade responde ao corpo, com uma multidão de outros sons e de vidas em cada janela. E agora, é a câmera que se move. O cinema põe-se a girar numa conexão mais ampla, quase cósmica, com os movimentos do mundo.
Esse giro é gestual e se expõe na sua própria gestualidade. Na contaminação tão intensa de Corações Sangrantes com a dança, ele se toma todo, de ponta a ponta, pela expressividade do movimento, seja o que vem dos instantes em que efetivamente um corpo dança, seja pela atmosfera que se cria com o simples cair e enfiar-se num colchão em silêncio. É que o corpo se prolonga também em gag, aquele efeito que dá não só uma tonalidade cômica à representação, mas que faz ver a própria espessura do que um gesto suporta e expõe. O súbito e inusitado aparecimento de um fantasma no meio de uma sala é a expressão mais evidente dessa interrupção em qualquer curso linear dos eventos, para fazer uma torção de surpresa e de quebra na naturalidade da encenação. Mas é também naquela panorâmica que revela a cidade, ou na explosão de energias diante da parede cindida em duas cores, que os gestos de cinema reintroduzem a gag como uma torrente desconcertante de qualquer operação com finalidades. É essa quebra gestual que revela, então, o puro e mais honesto desejo de simplesmente invadir uma parada – e em última instância, de simplesmente juntar uma galera e experimentar os movimentos do corpo e do cinema, quando esses dois se atiram juntos no mundo.