Ventos de agosto, de Gabriel Mascaro
Uma forma fílmica nasce do encontro com o mundo, tramada entre aquilo que a experiência sensível possibilita e aquilo que se arranja com o cinema. Esse jogo pode ser mais ou menos hierárquico, e também mais ou menos aberto e permeado por uma igualdade estética. Existem diferenças de estatutos e de modulações naquilo que tanto as formas do mundo quanto as formas do cinema nos lançam, mas há também processos que podem ora ressaltar uma vizinhança maior entre esses universos, ora salientar uma distância expressiva entre um e outro. O que este preâmbulo tenta colocar como questão é o lugar de experiência – de escuta, de vista, de espectador – que é ponto de partida aqui para se aproximar dos procedimentos postos em movimento pelo filme de Gabriel Mascaro, Ventos de agosto. Mais do que propor respostas a essa questão que parece despontar no trabalho do realizador (não só nesse filme específico, mas ao longo das suas pesquisas como um todo – e valeria lembrar, sobretudo, Avenida Brasília Formosa), seria interessante experimentar um gesto de interlocução com a obra, para pensar em que medida a escritura passeia, tensiona e se revolve a partir desse espaço limiar.
Há um apuro visual que se lança com destaque, desde as primeiras cenas, numa maneira muito rigorosa de constituir os quadros e as composições, de reforçar as durações, de observar os corpos, as luzes, os movimentos da natureza. Estamos em um filme que tem, de maneira assumida, um interesse plástico por aquilo que os artifícios do cinema podem inventar, um grande valor que é dado ao resultado e à formalização na imagem e no som daquilo que foi captado, enquadrado e pesquisado com absoluto controle e precisa articulação estilística. A imagem de um corpo que se banha com Coca-Cola torna-se emblemática desse processo, ao mesmo tempo bastante marcada por certa deferência ao jogo formal de que a fotografia é capaz e profundamente interessada no que efetivamente pode esse corpo exposto e em compasso de balanço, por conta das ondas que batem no barco em meio ao mar. A câmera está bastante tomada pela energia desse movimento e dessa ação singular: o inusitado do gesto insere um corte no cálculo da imagem e traz camadas mais complexas para pensar as formas, que já não se limitam a evidenciar uma pura apresentação sensível. Essa imagem, no entanto, está cercada por outras imagens, em que a sobreposição do interesse plástico se acentua, e a capacidade virtuosa do gesto de filmar nem sempre recebe essa intervenção da presença corpórea. O descompasso acaba sendo fortalecido em benefício da poética de fabricação visual.
Há um trabalho de investigador da natureza, em certa medida, ao longo de todos esses encontros operados por Mascaro. O próprio realizador já destacou, em algumas entrevistas, o desejo de pesquisar o vento, as relações que ele estabelece com o espaço e com as vidas da comunidade em que se situa o filme. A escritura mesma da obra deixa isso claro, quando traça um desvio e insere uma quebra na estrutura, levando Mascaro para a cena, com todo o aparato de captação de som, na evidenciação de que se trata aí de registrar diferentes maneiras de manifestação dos ventos. A aventura ficcional é penetrada pelo próprio ato de realização e pelo mecanismo mesmo do artifício. E se essa quebra estrutural engata uma das torções potentes do conjunto do filme, ela também acaba se tornando a maior explicitação de como são tecidas as relações com o universo filmado. O desafio é sempre constituir contato, e ao vermos as conversações travadas entre esse estrangeiro que capta sons e as pessoas da comunidade, sentimos o quanto os mundos se tocam de forma bastante fugaz e que uma distância parece instransponível entre eles. Porque Ventos de agosto é também uma ficção construída em contato com a comunidade filmada, mas ao mesmo tempo bastante distanciada dela. Marcado pelo interesse em falar desse mundo relativamente isolado, o filme precisa lidar com os limites dessa aproximação, criada de forma circunstancial e inconstante. Essa precariedade da aproximação é inseparável do impasse contido no próprio estranhamento de uma forma cinematográfica não partilhada, de uma maneira de circular pelos espaços resultante de um movimento de fora para dentro.
A escuta do vento pontua esses instantes em que o filme se expõe, com toda a implicação que é possível extrair dessa ideia de exposição: não apenas o mecanismo moderno de colocar em cena o gesto mesmo de realização, mas uma exposição ao risco de revelar as próprias fragilidades e de colocar o rosto como que disponível a um fora. Esse filme virado ao avesso torna ainda mais visível e audível o interesse, de um lado, pelas possibilidades da máquina cinema, e de outro lado, pela potência maquínica da natureza em desencadear sensações, respirações, experiências. Estamos diante de uma vontade profunda em acompanhar os fenômenos naturais e dar a eles uma forma de cinema: perceber os ruídos dos ventos, observar como eles reverberam nos objetos, como eles fazem deslocar as ondas do mar, as folhas das árvores e mesmo os túmulos dos que morreram. E é aí que vamos encontrar uma nova camada dessa obra, o eterno retorno do tema da morte, percebido nesses deslocamentos e ressurgimentos dos restos físicos de quem já estava sob a terra há anos, e ainda transformado em dispositivo de encenação, quando uma nova virada da narrativa introduz a presença e o problema de um corpo inusitado.
As forças do mundo podem, então, quase que tragar os seres. O que parece ser constatado no âmbito da construção discursiva de Ventos de agosto – o mar avança, o vento tem uma potência de articular o inarticulável e de fazer fluxos inesperados, as rochas respiram – não passa imediatamente para as maneiras expressivas de organizar a enunciação. Esse embate irresolvível entre o que o filme planeja e o que o mundo tem a oferecer como potência se transforma em lugar de instabilidade, traçado sempre por se redesenhar, mistérios por se alargar. As formas de vida, as forças da natureza e as matérias do filme se arranjam e rearranjam, se montam e desmontam constantemente, e um lugar de convivência comum entre elas não para de escapar das mãos. É sempre desafiador encontrar a justa medida para colocar em compasso o rigor e a relação, para que o gesto de enquadrar não se torne gesto de enfatizar a distância.