Tenho um dragão que mora comigo (2013), de Wislan Esmeraldo
6 fev. 2014
Por Érico Araújo Lima
POTÊNCIA DOS CORPOS
Talvez existam duas naturezas de corpo em Tenho um dragão que mora comigo. Um é o corpo da própria casa, composto por vários objetos que precisam ser tirados e recolocados no lugar, que devem ser arrumados na cena e criar uma habitação, uma espécie de hábito. Junto a esse corpo, é posto em relação outro, que diz de uma presença humana, talvez o corpo no sentido mais usual do termo. O corpo de uma mulher e depois o de um homem que surge para fazer companhia a ela. Duas solidões que se tocam com desejo. Existe, então, uma forma de morar, percebida nos arranjos de móveis, nas disposições pelo espaço e na observação dos gestos que arrumam tudo isso, e uma maneira de desejar, que se explicita no encontro, mas também na espera por ele, ainda que só saibamos posteriormente do que se trata nessa expectativa.
Há um texto de fundo que passa pelas imagens desse filme de Wislan Esmeraldo. A escrita de Caio Fernando Abreu é evocada aqui no exercício de pensar uma imagem que recorte o fragmento de uma vida, que traga gestos de amor e momentos solitários. Histórias de dragões essas que imagem e palavra vêm contar. “Só quem já teve um dragão em casa pode saber como essa casa parece deserta depois que ele parte”, diz uma passagem do conto do escritor. É um trecho que não é citado diretamente no filme, mas de alguma forma ele parece ressoar no visível. E são essas ressonâncias sutis que marcam, ao mesmo tempo, a distância e a aproximação, a maneira de ter uma referência como fundo e de preocupar-se com as constituição das figuras na matéria fílmica. De modo que a experiência do filme pode ser fruída em uma independência desse lugar literário que é sobrevoado. Porque parece ser a força sensível dos objetos e dos seres na tela que desponta. E aí, em certa medida, o desafio é como criar os próprios dragões.
Então, cabe estudar justo aquelas duas naturezas do corpo na cena, perceber como elas entram em contato, como se constituem mutuamente. Existe um modo de repetir, ou de dar a ver os gestos como integrantes de uma rotina geral. É isso uma maneira de morar que parece ser apontada, quando o interesse está em perceber as dinâmicas de como as atividades domésticas retornam constantemente, entram em um contínuo e em um compasso de constância. A câmera não se aproxima muito e opta basicamente pela postura fixa, que faz mesmo com que a mulher saia de quadro em alguns momentos de movimento pelo espaço. Há poucos lances de proximidade nesses momentos de observação, e predomina um rigor formal nesse quadro em que as cores têm uma vibração bastante singular e em que existem níveis na imagem que tentam acentuar tanto a profundidade de campo quanto a presença de apenas um ser naquele lugar.
Mas a encenação faz surgir momentos bastante precisos em que o corpo da casa – do que o constitui – e o corpo do ser tornam-se elementos de tal imbricação que faz pensar mesmo o quanto a ideia de habitar é derivação de uma concepção de liga entre duas naturezas de corporeidade. Um abraço na geladeira vermelha para deslocá-la de um lugar parece um plano emblemático em que o humano se conecta a casa, especialmente quando na imagem seguinte o corpo descansa, sentado no chão, encostado no objeto que foi retirado de um ponto original. Estamos no chão, em um mesmo nível de altura, também na espera para a respiração, para novo fôlego.
Tudo vai se anunciando também como expectativa para uma visita. O preparo de um bolo, o vestido que é separado para ser usado dali a pouco. Vem uma impressão de estarmos diante de dois seres bastante singulares no cinema e também de um modo de relação ainda pouco pesquisada. Há também uma música que cria toda uma sonoridade particular nessa obra: o som de forró espalha uma melodia que remete a outros lugares, é uma tonalidade que faz sentir mais de como aqueles seres desejam constituir uma morada e um modo de estar junto. E o filme parece encontrar uma cumplicidade bastante delicada entre esses dois personagens, agora efetivamente uma aproximação, que passa direto pelo corpo e que guarda, ao mesmo tempo, uma sinceridade de troca. Quando os dois conversam brevemente, corpo sobre corpo, rosto sobre rosto, parecem também encontrar aí tal nível de contato que torna a conexão dos dois tanto esporádica quanto necessária para as vidas de cada um.
De dragões, de maneiras de morar, de modos de colocar corporeidades em relação. Tenho um dragão que mora comigo talvez seja um filme que mergulha na experiência de uma solidão para potencializar a presença sensível de corpos na cena.