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QUEM DEVEMOS SOCORRER

18 set. 2018

Mesmo com Tanta Agonia (2018), de Alice Andrade Drummond

Luna (2018), de Cris Azzi

Por Camila Vieira

Na apresentação antes da exibição de Mesmo com Tanta Agonia (2018) e no debate do filme, a atriz Preta Ferreira refletiu sobre o modo como muitas vezes não prestamos atenção ao nosso redor e não socorremos mulheres que precisam de ajuda. Ela relembrou uma cena em que sua personagem no curta despede-se da protagonista, no momento em que o noticiário informa sobre um homem que tinha sido atropelado pelo trem. Preta questionou por que sua personagem vai embora e deixa a amiga sozinha. “A sensação ao assistir ao filme é ‘por que eu não fiz mais?’ Um olhar pode ser um pedido de socorro. A gente pode salvar uma vida se parar um instante para prestar a atenção nesse olhar”.

Ao colocar em questão a inércia generalizada de quem convive diariamente com notícias de tragédias que assolam o cotidiano, o curta de Alice Andrade Drummond não é negligente com o olhar de quem pede socorro. É o olhar de uma mulher, que pega um trem lotado em São Paulo para voltar para casa após longa jornada de trabalho. O trem atropela o corpo de um vendedor ambulante, que já se encontrava estirado na via. O conhecimento da tragédia pela protagonista é filmado a partir de uma encenação que converge para a sensação de opressão e sufocamento: o rosto da personagem está comprimido em meio aos demais corpos que ocupam o vagão lotado do trem.

O absurdo acaba por suceder a tragédia. Um grupo de meninas comemora o aniversário de uma delas dentro de uma limousine. Elas filmam selfies com o celular, divertem-se durante o passeio, cantam músicas pop. Por mais que as imagens pareçam engraçadas para quem assiste ao filme, é assustador pensar como o contexto contemporâneo não poupa crianças dentro de um modelo de vida de ostentação e consumo. Pior ainda quando o padrão é reproduzido e celebrado nas redes sociais, em busca da visibilidade dos mil likes.

Ao final do curta, a protagonista sozinha dirige à noite, ao som de Woman, de Neneh Cherry. O rosto iluminado em meio à escuridão ocupa o centro do quadro. Ao fazer durar a cena por tempo suficiente para que o espectador seja solidário à angústia no olhar da personagem, Mesmo com Tanta Agonia convoca um deslocamento pertinente: não interromper a tristeza a favor da celebração da apatia cotidiana. É preciso ao menos não se anestesiar diante da tragédia incontornável do outro. A agonia da personagem torna-se o desconforto de todos nós.

O que o longa-metragem Luna (2018) afirma é justamente o oposto de Mesmo com Tanta Agonia. O acontecimento trágico no filme de Cris Azzi não irá mobilizar de imediato o coletivo, que insiste em regurgitar seu anestesiamento generalizado. Será preciso que a ruptura da apatia venha justamente da vítima que concretiza uma ação individual de confronto com seus agressores. Só então o coletivo irá perceber a necessidade de tomar alguma posição diante do intolerável. É constrangedor acompanhar o desenvolvimento de uma narrativa de confirmação da vítima-heroína: aquela jovem mulher que sofre com o machismo dos colegas, não é acolhida pelas amigas durante sua dor extrema de humilhação e precisa enfrentar sozinha aqueles que a agridem. As amigas do colégio agem depois de Luana. Tarde demais para quem já sofreu tanto.   

Se é possível localizar algum interesse no modo como a dramaturgia acompanha os ritos de passagem de Luana dentro de uma roupagem de filme coming of age, o longa de Azzi lança outras questões periféricas que são apenas jogadas na trama. Parece haver certa indiferença e equivalência na forma como certos detalhes da trama se desdobram: a tentativa de abuso do pai, a distinção de classe entre as personagens, o contexto político como pano de fundo.

É bastante ingênua a crença de que a última sequência seja simbólica do emponderamento feminino. Largada na dramaturgia como apêndice de um falso final, a exposição coletiva dos corpos das estudantes acontece após Luana tomar coragem de expor novamente seu corpo diante de seus agressores. Em outras palavras, a solidariedade das demais mulheres só é palpável após a reação individual de Luana. Fardo pesado demais a ser entregue à protagonista que precisa novamente ir ao fundo do poço para cumprir a missão de heroína de sua própria história. O filme se seduz por um jogo de enfrentamento que arquiteta uma armadilha perigosa que pode servir apenas como instrumento de alívio da consciência.


Ao longo da narrativa, Luana sofre ao rever o vídeo no banheiro, ao ler os comentários misóginos nas redes sociais, ao filmar uma carta de despedida para a mãe, ao procurar desesperadamente a mãe no trabalho. Ela se isola por vergonha, por medo. Não há qualquer tentativa de acolhimento das amigas a não ser breves aproximações. Luana sofre, chora, tenta se matar – em uma cena que lamentavelmente romantiza a tentativa de suicídio com uma caminhada idílica por uma floresta – e o filme vaticina à personagem a tarefa ingrata de resolver sozinha seu problema. Volto aqui ao questionamento de Petra Ferreira no início desse texto e devolvo a seguinte pergunta para Luna: até quando o olhar de quem pede socorro continuará a ser ignorado?

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