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Índios Zoró – Antes, Agora e Depois? (2015), de Luiz Paulino dos Santos

1 fev. 2016

Por Érico Araújo Lima

QUANDO ALGO EXCEDE A IMAGEM

Há em Índios Zoró – Antes, Agora e Depois?, de Luiz Paulino dos Santos, uma elaboração formal aparentemente descuidada. Essa impressão, no entanto, logo se desfaz, quando se embarca mais intensamente na deriva incerta do filme. O trabalho de Paulino, na sua franqueza de mergulho e de exposição de uma relação, vai se tornando uma força cinematográfica tomada por uma vitalidade muito singular. Esse filme que parte para um reencontro, sem saber muito em que se transformará, expressa algo muito raro no cinema brasileiro: trata-se aqui de atingir uma certa zona de indistinção entre as formas expressivas da imagem e as maneiras de viver. Se o próprio Paulino adquire uma centralidade na mediação dos processos, isso parece se dar menos por um desejo de falar de si do que por um inusitado modo de ser atravessado por um mundo outro, pelas experiências dos povos indígenas, pelas suas cosmologias, pelos sofrimentos que afligem essas vidas. Há aqui um realizador de peito aberto, radicalmente entregue à relação, tanto na aproximação com os sujeitos filmados quanto na própria exposição a uma comunidade de espectadores. É como se estivéssemos diante de um devir-índio, que não diz respeito a uma simples imitação da cultura do outro, mas de uma travessia vital por aquilo que se passa entre corpos, entre vidas que se tornam vizinhas.


Se Índios Zoró é a narrativa de um retorno e de um reencontro, ele se dá como elaboração bastante sincera de uma comunidade sensível entre mundos heterogêneos. E se caminharmos por essa chave, talvez seja possível pensar que os conceitos de cinema e que as formas da imagem surgem inauditas justo como resultado do embrenhar-se da máquina na tessitura relacional das vidas. Ao entrar em certo regime de indiferenciação com o próprio gesto de aproximação, a forma não pode emergir como um dado de antemão, a ser atualizado por um rigor ou por um ato poético a compor uma cena, posturas dos corpos no quadro, articulações entre o próximo e o distante, o alto e o baixo. Parece que estamos muito além de uma simples fissura do formalismo, porque há evidentemente muitas nuances ou escalas de gradação entre uma depuração formal e um puro investimento na própria escritura. Índios Zoró talvez já nem esteja se colocando nesses dilemas, porque não é mesmo esse o problema que interessa a ele.


E então, talvez justo por isso, por não se colocar em qualquer dicotomia entre a atenção demasiada sobre as formas e a abertura ao mundo filmado, o cinema surge aqui numa pulsão de vida tão urgente. Sem que seja forçado qualquer apaziguamento de uma diferença radical entre quem filma e quem é filmado ou mesmo entre a imagem e a vida desses povos, é possível trabalhar nesse intervalo para constituir uma relação de igualdade, que não implica um mito fusional entre os heterogêneos, mas uma crise fundamental nas desigualdades. E assim coexistem, em um plano de indiscernibilidades, deuses, humanos e não-humanos, tempos embrenhados, espíritos, formas fílmicas e imagens variadas.


Ao longo do próprio percurso, Paulino chega a explicitar a ausência de roteiro como motor do filme. Existem alguns elementos de partida bastante simples, que disparam a cena, mas sem se tornar limitadores dos encontros. O indefinível do porvir decanta uma forma fílmica atravessada por várias forças, submetida a espécies de viradas repentinas, de gestos surpreendentes e de uma montagem com fusões improváveis. Aqui o reencontro com os Zoró acontece com um intervalo de 30 anos, desde a realização do curta Ikatena (1982), que tem imagens constantemente convocadas para o cotejamento com a experiência do presente. E a solicitação desse material de arquivo não se dá também sem a evidenciação de uma heterogeneidade de gestos de aproximação, antes como uma abordagem mais etnográfica e poética, e agora segundo um registro que mistura tonalidades cósmicas, transcendentais e políticas. A reunião de uma infinidade de mundos diferentes enfrenta, inclusive, o desafio inevitável do lacunar, da criação de algumas zonas imprecisas quanto a questões bastante urgentes na experiência vivida pelos povos filmados, especialmente quando se trata dos processos de lutas em torno do território. Sem se propor a um gesto mais adensado a respeito de uma série de tramas que perpassam os sofrimentos desses povos, os conflitos com os poderes ou as dinâmicas da entrada das religiões evangélicas, talvez haja um horizonte não explorado que resta como extracampo e que pode complicar a aparição do filme como operador de tensões críticas.


Ainda assim, se o lacunar de algumas discussões levantadas pelo filme enfrentam alguns limites da relação entre a escritura e uma experiência política do presente, não há recuo ou reserva quando se trata de investir no contato com os modos de vida dos Zoró. Há aqui, fundamentalmente, uma experimentação corpórea e espiritual do filme com o multiverso filmado. Paulino se interessa, especialmente, em tomar-se pela experiência do outro, em se deixar contagiar por uma multiplicidade, em experimentar rituais, como no momento em que também deixa as mãos serem tomadas por formigas ou quando pinga um colírio nos olhos, à maneira do que fazem os Zoró. Mas é especialmente um mergulho na água que se torna o gesto mais emblemático da sinceridade do encontro e do devir que o realizador se permite atravessar. Somos mesmo surpreendidos pela atitude repentina. Paulino está vestido, rememora alguns momentos do passado e, de repente, se atira nas águas e vai nadando, submerso por esses fluxos, envolvido na travessia. Sai depois todo molhado e já retomando o curso do filme. A montagem convoca, nesse momento, algumas imagens do curta de 1982, nas quais crianças Zoró mergulhavam nesse mesmo local. Em uma interpolação de tempos e numa aproximação de gestos pela imagem, Paulino e os Zoró vão se confundindo, tanto pela intempestividade do corpo do realizador em cena quanto pela montagem que decide potencializar essas reminiscências gestuais. Talvez esse mergulho tão intenso de Paulino nas águas seja o grande momento cinematográfico de toda a Mostra de Tiradentes desse ano. Talvez ele seja uma bela maneira de viver, efetivamente, a radicalidade de uma vizinhança do cinema com um mundo outro que o ultrapassa.


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