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OLHAR OS GESTOS

História de uma pena (2015), de Leonardo Mouramateus
Do que se faz de conta (2016), de Amanda Pontes e Michelline Helena 
Do lado de cá (2016), de Emerson Déo Cardoso


4 jul. 2016

Por Érico Araújo Lima

Tenho a impressão de que uma entrada possível nessa sessão do Cine Caolho
poderia passar por algo talvez muito básico da operação do cinema, que valeria
tentar formular assim: como fazer, na cena, um inventário de gestos expressivos,
advindos dos corpos filmados? Ou, por outra, como capturar aquele instante fugaz
em que um vento reverbera no rosto e movimenta os fios de cabelo?


Se a pergunta pode parecer muito ampla, tomemos então o cuidado para não ir
muito longe. E assim, chegando perto, tentemos nos aproximar da casa, do quintal,
do quarto, da cozinha e dos corpos enquadrados pela câmera em Do lado de cá, de
Emeson Déo Cardoso. Aproximação, de imediato, que acolhe gestos de crianças.
Logo nas primeiras imagens, elas apontam para o antecampo ou olham
frontalmente para a lente, encarando o aparelho que se avizinha, tensionando os
lugares, devolvendo um olhar para nós, que começaremos a nos colocar em
movimento na medida mesma em que se consegue constituir hospitalidade com
esse mundo. Câmera logo agachada a filmar na linha de um olhar, eis uma tentativa
de estar à altura – desafio fundamental da máquina-cinema, esse de estar à altura
sensível do mistério que atravessa a vida dos filmados.


Inventariar gestos diz respeito aqui, então, a apostar na aparição dos detalhes de
uma casa, nas marcas de um café da manhã sobre a mesa, nas roupas estendidas no
varal. E na escuta dessa morada, resta encontrar ainda os rastros daqueles que já
não estão mais lá, por terem suas vidas arrancadas pelo aparato de Estado.
violência que ronda o extracampo e se materializa mesmo nos braços da mãe, aos
modos da iconografia de uma pietà. Será preciso ainda afirmar depois um outro
gesto, aquele dos que resistem, pathos não mais das lágrimas, mas do levante, do
movimento rumo à possibilidade de um erguer-se coletivo. Erguer-se dos braços,
erguer-se do cinema frente à destruição das vidas.


Também numa relação em regime fantasmático com um corpo não mais lá, seria
possível pensar agora o que move uma filha, levada a fazer suas travessias sem a
companhia da mãe. Do que se faz de conta, de Amanda Pontes e Michelline Helena,
lida com a ausência por meio da presentificação das imagens do cinema,
integrantes materiais do convívio com os outros corpos em cena. Bette Davis e
Joan Crawford coabitam um quarto, trespassando um terceiro corpo, cuja sombra
vem se conjugar com a impressão da luz e dos demais gestos em movimento na
parede. O fundo da imagem é sempre já uma outra imagem, como já dizia Serge
Daney.


O título do filme de Robert Aldrich, projetado nesse anteparo do presente, colocava
a dúvida sobre os infortúnios que teriam sido atravessados pela vida de uma das
personagens. O que terá acontecido a Baby Jane? – conhecemos a pergunta do filme
clássico. Da mesma forma que a questão poderia recair sobre o declínio das atrizes
criadas na narrativa do filme convocado como arquivo, agora a pergunta parece
restar tanto à mãe quanto ao futuro incerto das vidas de duas jovens, entre uma
partida repentina para São Paulo e a escolha de permanecer, em meio a uma

cidade de ruas escuras e às cintilações do cinema projetado dentro da própria casa.
A tarefa política que resta, ou a restância de uma linha de fuga, talvez esteja no
trabalho da imaginação, nas potências de criar imagens, a partir da máquina de
atrações guardada em casa pelo pai, que encontrou a filha naquele espaço escuro
onde corpos se encontram para ver junto.


Talvez não seria de todo absurdo fazer, então, uma passagem dessa reunião de
corpos na sala de cinema para a presença daquelas vidas reunidas em uma sala de
aula, se já nos acompanharmos de História de uma pena, de Leonardo
Mouramateus. Mas não vale a pena ir à escola para aprender coisas que eu não sei,
como diria Ernesto, no belíssimo filme de Huillet e Straub, En Rachâchant (1982).
Se a sala de aula e a sala de cinema partilham da possibilidade de uma pedagogia, o
que a dramaturgia dos corpos no filme de Mouramateus assinala é que se trata de
aprender algo a partir daquilo que o corpo experimenta na vida. Lição
fundamental: saber se entreolhar, cruzar o ver e o ouvir, na trama entrelaçada de
um coral. Labirinto das trocas de olhares, reverberação das vozes. Parece que
estamos aqui diante de uma composição coreográfica e musical entre aqueles que
se colocam juntos num mesmo espaço, seja a sala de aula, a festa ou o carro que
vira lugar de partilha do baseado.


Como uma mão toma um cigarro, como a boca fuma? Como um vento bate no
rosto? Como o torço se ergue da relva e vem ser banhado pela luz, espraiada por
entre as nuvens, vez em quando? Pedagogias dos corpos, aprendizado
indisciplinado a partir das aventuras intelectuais de cada um. O lampejo trazido
por uma festa, evocada por relato e música, se afirma como o diapasão desse filme
atravessado, constantemente, pelas forças que o transbordam. É nessa catalogação
rigorosa dos modos expressivos de um corpo que o cinema encontra algo como
uma vocação fundamental de ser arte dos gestos – arte que, ao introduzir variação
nos gestos cotidianos, transforma essa matéria em gestos ritualísticos de cinema:
cena sobre cena.

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