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CORPO EM TRÂNSITO

Apartes (2016), de Ernesto Gadelha e Alexandre Veras 
107, 108 Mariana (2015), de Ariel Volkova
Atalanta (2017), de Fernanda Brasileiro e Hylnara Anny 
Devoração (2017), de Andréa Bardawil e Nigéria 
A saída da fábrica Cione (2015), de Virgínia Pinho

6 nov. 2017

Por Laís Ferreira Oliveira

A performance é o gesto diante de um ordenamento: ela está em vias de se inserir em
uma ordem, ou de transfigurá-la na mesma medida em que se transfigura a si mesmo.
Nesse sentido, a performance é o gesto em vias de se colocar em cena, mas que, nesse
‘em vias de’, reinventa a cena sem finalmente se reduzir a ela. Trata-se de uma força do
gesto em composição instável com o espaço (André Brasil, 2014)

Começamos essas notas com a epígrafe de um texto do pesquisador e professor André
Brasil para nos ajudar a pensar os filmes dessa sessão. Essa não deixa de ser uma escolha
curiosa: aqui, começamos a falar de performance, aquilo que parece propor e, a todo momento, desconstruir os significados dos movimentos de um corpo. É nesse campo, no sentido sempre inacabado, fraturado, incompleto dos movimentos do corpo que Apartes (Ernesto Gadelha e Alexandre Veras), 107, 108 (Mariana de Ariel Volkova), Atalanta (Fernanda Brasileiro e Hylnara Vidal), Devoração Como permanecer fortes? (Andréa Bardawil e Coletivo Nigéria) e A Saída da Fábrica da Cione (Vírigina Pinho) parecem se aproximar. Se o cinema põe em cena, dar a ver os deslocamentos e movimentação de corpo, isso não implica, imediatamente, na explicação do que se passa ou na ordenação desses gestos por meio de uma estrutura narrativa.

Quando vemos Apartes, uma pergunta se coloca: como é possível a uma câmera dançar? Aproximar-se de um corpo, chegar bem perto do chão, tentar atingir os membros de um dedo? Que dança existe quando a câmera se movimenta em um ritmo distinto daquele com o qual trabalham os bailarinos? Desses bailarinos, não temos a visão completa do rosto ou a precisão de suas identidades. Apenas os vemos do pescoço para baixo, uma imagem bem próxima dos seus tornozelos. Essa é uma dança outra, que não é aquela que veríamos sentados em uma plateia, distanciados dos bailarinos. Há um momento em que vemos a tatuagem em um pé e, aquilo que poderia identificar, individualizar, caracterizar, permanece limitado e misterioso, na medida em que não nos é possível associar aquele desenho a quem decidiu inscrevê-lo ali, naquele espaço da pele. Essa situação de uma possível identificação, mas com a presença de algum elemento que a interrompe, também existe quando vemos, em plongée, o movimento dos bailarinos no palco.


Quando conseguimos ver o formato das cabeças e faces, não conseguimos vê-los em detalhes. E se a câmera se aproxima um pouco mais do rosto, apenas os vemos desfocados, com a aparência nebulosa e em penumbra. Em um momento, a distorção da imagem e a câmera lenta propõe ainda outro ritmo àquela dança e à observação daqueles corpos. Há também a distorção da imagem e o uso de câmera lenta, que colocam um ritmo distinto daquele dançado enquanto se filma. Com a câmera em mãos, já não se trata de apenas registrar aquilo que foi, mas pensar, por meio da imagem fílmica, que imagem é possível ser.


Imaginar sobre e a partir do corpo também parece ser o desafio ao qual se lança 107,
108. É preciso tentar ver, registrar, os movimentos e provocações da fé, da crença e de um rito no corpo do homem. Se isso por vezes se dá na ordem do mistério, daquilo que não é visível ou tangível, aqui o corpo que perfoma com um lenço também se coloca na ordem da sugestão e da dúvida. Depois de passarmos bastante tempo olhando apenas um rapaz com um lenço, vemos outros corpos idênticos ao dele, que o seguem, com tecidos de cores diferentes. Trata-se de ver através, de ouvir um murmúrio e não conseguir entendê-lo completamente: próximo àquilo que é translúcido, não há nitidez, apenas uma sugestão daquilo que poderia ser. É um pano arco-íris que é deixado para trás, enquanto ouvimos a voz que canta uma reza, pedindo a Santa Maria para rogar pelos pecadores: nem mesmo uma prece parece poder nos alcançar com clareza ou respostas.

Em Devoração - Como permanecer fortes? e Atalanta o corpo também aparece como agente capaz de alguma transformação ou mudança que não se encerra na sua dimensão física. É
pelos espasmos e contrações de um abdômen que se inicia Devoração. Há algumas incertezas: será que o contorce provém do movimento dos órgãos de dentro ou é influenciado por algo do lado de fora, que desconhecemos? Essa também é uma pergunta possível aos movimentos de alongamento que seguem essa primeira cena, sobre os quais não podemos afirmar se tratam-se apenas do aquecimento e da distensão muscular ou se são provocados pelo desejo de convocar para aquele corpo algo externo a ele. Ao ser questionado sobre o que seria possível ser feito como resistência à dinâmica do mundo, em um espaço aberto numa comunidade, um dos filmados defende que resistir seria “como nossos corpos se encontrarem”, encontrarem formas de sair deles mesmos, entrar em transe. Essa é uma guerra que permite “sair com ternura”, como ele diz. Uma luta que pode ser simulada, em uma aula de dança, em que não há outro inimigo corpóreo visível diante de quem luta, mas a consciência de que é necessário permanecer lutando por alguma possibilidade de conquista e vitória. Em Atalanta, já não é mais possível discernir
se trata de um corpo em transe ou de um corpo sóbrio: só é possível habitar, passar por aquele território, seguir pelos espaços com esse corpo que se contorce, mas não dá pistas para identificarmos o porquê dessa movimentação ou quando cessará sua ação. O corpo em transe parece aqui se tornar o corpo em trânsito, aquele capaz de se movimentar.


Em A saída da fábrica, a referência aos irmãos Lumière acompanha o filme desde seu
início, no nome do filme. Dos franceses, A Saída dos Operários da Fábrica Lumière em Lyon foi lançado em 1885 e mostra o momento em que trabalhadores deixam o espaço da indústria após o dia de expediente. Qual seria a diferença existente em fazer esse gesto agora, anos depois, e com o cinema sonoro? Nessa fábrica mais recente, vemos duas portas, que, curiosamente estão nomeadas como “entrada”. E, na parte mais baixa da rua, próximo ao muro, temos uma visão que não é apenas dos trabalhadores, mas daqueles que passam pela rua e, também, de algumas trabalhadoras que entram enquanto outros saem. Nas fábricas do mundo contemporâneo, já se torna possível a existência de uma fábrica em que nunca todos sairiam totalmente, com turnos. No filme de Pinho, o uso de cores também se torna um elemento importante. Há uma pluralidade das vestimentas daqueles trabalhadores: alguns estão de cinza, outros verdes, alguns de azul e uns poucos se diferenciam por usarem bonés vermelhos. Há até mesmo um que se destoa, mostra-se muito diferente dos demais por estar vestindo uma roupa rosa. Do quadro fixo, temos um plano que se organiza em três partes diferentes: a parte de frente da fábrica, a do canto esquerdo e a do canto direito. No canto esquerdo, temos uma profundidade de campo, de alguma maneira, maior: por ali, o volume de trabalhadores é mais intenso, por ora dificultando distinguir um trabalhador do outro. Alguns trabalhadores saem correndo, não sabemos ao certo o porquê ou tampouco porque o fazem. Nesse sentido, podemos aproximá-los aos corpos que dançam em Apartes. Se, nesse filme, não temos a identidade precisa daquelas pessoas, considerando especialmente o fato que não enxergamos seu rosto, aqui o anonimato vem junto ao lugar de trabalho daquelas pessoas: o uso do uniforme, a saída em massa, parecem também, de alguma maneira, esvair o que há naquelas pessoas de único e de particular. Quando se afastam um pouco mais da porta da fábrica, o movimento daqueles corpos parece ir restituindo, pouco a pouco, o que há de particular naquelas pessoas: é quando uma delas sai correndo pela porta da fábrica. Se, no filme dos irmãos Lumière, um rapaz numa bicicleta e um cachorro se colocam como obstáculos à circulação de pessoas na saída, aqui são as pessoas que não estão uniformizadas, que cruzam ou param no alpendre da fábrica que se diferenciam. Uma mulher loira e elegante se aproxima e fica ali perto de onde estão saindo os trabalhadores. Seu corpo se destaca e chama atenção dentre os outros que passam. Uma das portas se fecha, a outra está entreaberta: parece que já não há muito a ser visto. Depois que a fábrica fecha, vemos o maior trânsito de veículos: carros, uma bicicleta. Sem aqueles corpos em trânsito, outros elementos da rua e da calçada convocam nossa atenção.

Referência:
BRASIL, André. “A performance: entre o vivido e o imaginado”. In: PICADO, Benjamin, MENDONÇA; Carlos Magno e CARDOSO FILHO, Jorge. Experiência Estética e
Performance. Salvador: EDUFBA, 2014.

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