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OLHAR PARA RESISTIR

17 set. 2018

Liberdade (2018), de Pedro Nishi e Vinicius Silva

Por Camila Vieira

Liberdade (2018), de Pedro Nishi e Vinicius Silva, começa com três planos que parecem compor retratos vivos de seus personagens principais. Sow está diante da janela de um aeroporto, Satsuke em uma rua vazia à noite na Liberdade, em São Paulo, e Abou em meio à movimentação de uma festa também no mesmo bairro paulistano. Os três personagens estão posicionados no centro de cada enquadramento e dois deles olham para a câmera. A frontalidade da encenação fílmica convoca o cruzamento de olhares entre quem assiste ao filme e quem está sendo filmado.

Liberdade anuncia e coloca como estratégia fílmica o gesto do olhar opositivo, que Bell Hooks afirma como o desejo rebelde dos negros em olhar, ainda que constantemente reprimido, interditado e punido. Aos negros, sempre foi negado o poder de olhar. Em Liberdade, os guineenses Sow e Abou olham para a câmera e, por extensão, para nós espectadores do filme. Mas o gesto também é dado a uma japonesa. O olhar opositivo no filme é ampliado para os diversos imigrantes que ocupam o bairro Liberdade e que vivenciam dificuldades em ser aceitos como estrangeiros no Brasil. “Bem-vindo, mas não é bem-vindo” é a frase que Abou repete e que posiciona a sensação de deslocamento dos imigrantes que constantemente encontram barreiras migratórias.

  

O curta de Vinicius e Pedro cria espaços de solidariedade entre a geração de asiáticos que, no passado, migraram para o território brasileiro – o filme chega com o timing da comemoração dos 110 anos da imigração japonesa –, e os africanos que, no presente, começam a ocupar o bairro paulistano. A relação entre o passado e o presente é explicitada na sequência em que fotografias antigas de famílias de imigrantes asiáticos vão cedendo lugar a imagens de imigrantes africanos. Guineenses, haitianos, congoleses, angolanos, togoleses convivem com japoneses, coreanos, chineses. A posição de igualdade entre pessoas com diferentes tradições culturais é marcada inclusive cenicamente, quando Abou e Satsuke jantam um de frente para o outro na mesa.

Grupos heterogêneos de estrangeiros habitam um mesmo território e cabe a eles buscar formas de partilha do espaço. A própria cidade guarda marcas de outros povos que ali viveram em um passado longínquo e foram executados em praça pública. É preciso respeitar a história dos que estavam ali antes, dos fantasmas que insistem em assombrar, como bem lembra Abou. Neste ponto, Liberdade é próximo de Los Silencios (2018), de Beatriz Seigner, por inventar uma dramaturgia solidária à memória de quem sempre resistiu ao poder dos dominadores.

O olhar para a câmera dos personagens principais e de tantos outros secundários que povoam a narrativa de Liberdade não se limita apenas a uma simples configuração dos corpos em postura de retrato. Ainda que a estética do filme encontre paralelos com o ato fotográfico, são rostos que saem da penumbra para a luz, do invisível para o visível. O desejo é de quem acredita que seu olhar pode mudar a realidade. Não basta apenas olhar, mas lançar o olhar como possibilidade de resistência diante do controle e da hostilidade do outro.

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