O estranho caso de Ezequiel, de Guto Parente
Narrar um estranho caso pode ser, de imediato, um princípio de pacto que se estabelece com o espectador. Esse pacto é um convite. Isso quer dizer que, nesse elo sempre desafiador entre filme e espectador, o jogo das convenções cria certo vocabulário emocional comum. Mas a questão é como fazer do convite para a imersão um gesto que consegue também devolver um mundo problematizador ao mundo vivido. Uma atmosfera de mistérios, uma escalada envolvente de estranhezas e uma chave de suspense vêm compor o relato fabular que está, simultaneamente, conectado, de modo radical, com a experiência de todos os dias. É como se o descolamento de qualquer registro realista pudesse jogar o real para uma elaboração em outros termos. As artimanhas da imaginação convocam para habitar uma experiência, mas isso não se dá sem a construção de um espaço de torções. O estranho caso de Ezequiel nos mostra que uma das forças do cinema pode residir no envolvimento estratégico em uma narrativa, para que a própria constituição de nossas relações coletivas seja posta como um problema.
Mas como pode um filme nos confrontar radicalmente com o presente, nos fazendo também oscilar entre essa atualidade e a deriva cósmica por outros regimes de espaço e de tempo? No relato desse estranho caso, no qual Ezequiel encontra-se com aqueles que vêm de muito longe – do outro lado, de outro planeta – parece ser possível aprender algo muito central a respeito de como fazer as pontes entre próximo e distante, entre a casa, sua intimidade, seus hábitos cotidianos, suas plantas, e a presença do outro, suas vibrações singulares, sua constituição de corpo, seus hábitos estranhos e familiares. O filme de Guto nos incita a pensar que a elaboração das atmosferas e a invenção colorante de outros mundos são inseparáveis da constituição de uma ética a respeito dos modos de tecer alianças com os visitantes que chegam de mundos longínquos.
Essa ética da relação, se pudermos chamar assim, encontra-se, de forma emblemática, no modo como Ezequiel acolhe o ET. Seria possível tomar esse momento preciso como aquele no qual a cena fílmica engendra certa postura de receptividade ao estrangeiro. Ezequiel abre as portas e imediatamente surpreende-se com a irrupção de uma presença lá fora. A resposta imediata é erguer os braços: o mundo exterior costuma chegar como ameaça. Mas logo que o olhar se demora e percebe a singularidade do corpo que aparece, o gesto se transforma. Os braços erguidos abaixam e convertem-se num toque firme que acalma. Na lenta aproximação de Ezequiel frente ao corpo do outro, passamos de um gesto de medo, que parecia naturalizado no corpo, à possibilidade de um mundo relacional entre duas matérias figuralmente distintas. O toque se combina com um posterior recuo do passo e um sorriso no rosto. Nesse lusco-fusco da noite, em que o verde do ET se destaca, e seu movimento acentua uma singularidade, é como se pudéssemos apreender uma energia do contato, cadenciada por uma duração, desenhada pelo jogo de cores. O cinema nos mostra aí que os gestos do visível nos contagiam por algo da ordem também do invisível, ou daquilo que está sempre por se fazer entre os seres – os laços, as pontes.
Sintomaticamente, o gesto de erguer os braços se repete em outro instante do filme, quando é a polícia que ronda o exterior, convocada pelo vizinho que somente encara nos modos de vida do outro uma ameaça e um assombro. Dessa vez, o erguer dos braços é resposta à violência policial que irrompe do fora, violadora e repressora das potências da vida. Aqui o corpo não pode fazer aquela alteração gestual do encontro com o visitante, porque quando as relações são atravessadas pela disparidade e pela agressão, restam apenas, efetivamente, uma poética e uma política da não-reconciliação. Enquanto o ET chega como visita, a polícia vem como invasora e só pode se configurar, portanto, como inimiga.
Essa diferença entre os dois momentos é crucial. Há um elemento de encenação, mas há também um motivo iconográfico que se pode enxergar nessa variação dos gestos de um corpo. E esse desenho das formas se reveste, fortemente, de um pensamento ético. Diante do ET, os braços erguidos se convertem num gesto de acolhida e de espera para que o corpo convulso estabeleça outros ritmos de vibração. Eis uma aposta fundamental de Ezequiel em receber o outro que chega de longe, em dispor-se a estabelecer uma relação e a não considerar aquele que chega como uma ameaça. Diante da polícia, essa mudança torna-se impossível: o confronto se dá agora com um exterior que vem justamente tentar atropelar aquelas formas de vida que estão se constituindo ali dentro da casa. Essa batida policial violenta reverbera o próprio caráter inóspito da cidade que Ezequiel percorria em outra cena: ruas desertas, vazio completo, dificuldade de habitar.
Estamos, então, diante de dois modos muito distintos de constituir relação, que se dramatizam nas formas do filme, ao mesmo tempo em que ecoam emoções políticas. Arriscaria dizer que o gesto de Ezequiel diante do visitante longínquo é uma resposta a todo um modo como o espaço exterior, o vizinho e a polícia lidam com a presença do outro. Trata-se de uma proposta ética e política: não mais perceber no outro uma ameaça, mas uma visita alvissareira. Ao mundo da hostilidade, o gesto de Ezequiel é uma resposta de hospitalidade.
Talvez essa possibilidade de reação venha da capacidade de Ezequiel em lidar com a própria solidão deixando-se carregar pelo povoamento das plantas, das lembranças, dos sonhos e dos pensamentos. Sempre acompanhado por muitas outras forças, ele sabe, então, lidar com a possibilidade de acolher. Aquela diferença figural entre as matérias dos corpos parece ser aqui uma chave importante para as proposições do filme. Porque o processo de tessitura dos laços entre Ezequiel, Lorena e o ET passa, muito intensamente, pela maneira como nossos modos de ver são convocados a perceber a aparição singular de cada corpo, nos seus tempos, nos seus olhares, no seu modo de fumar, no seu jeito de responder a uma pergunta. Mais uma vez, há toda uma articulação estética da cena que vem nos dizer também sobre certa modalidade de operar uma relação. Na dimensão dramatúrgica da primeira parte do filme, lidamos com uma composição dos corpos que passa pouco pela palavra e mais para o convite a acompanhar a decantação dos gestos. Só se pode responder sobre o lado de lá com um fechar dos olhos e com a tela escura convocada pelo gesto da montagem.
É como se pudéssemos indagar a respeito da aliança que Ezequiel estabelece com os visitantes a partir da maneira como a atmosfera da casa se vê contagiada pela constituição de cada corpo singular. E, simultaneamente, é preciso observar como cada corpo longínquo se vê alterado na relação com os objetos da casa, com uma cidade ao fundo, com a retomada do ato de regar as plantas – feito nas repetições cotidianas de Ezequiel e depois no estilo próprio do ET. Os corpos se encontram reunidos, montados cenicamente nas suas variações vibratórias: corpo verde, convulsivo, fulgurante do ET; corpo pálido, olhos fundos de Lorena, marcados pela passagem por outro mundo, corpo com velocidades mais ralentadas, capaz ainda de despertar uma floração na mão. No momento de um jantar, a reunião desses três corpos culmina no riso, que se torna uma espécie de atravessador rítmico das carnes de cada um. É pela ressonância das caixas respiratórias e das expressões diferenciantes dos rostos que esses risos excessivos e eloquentes vão se colocar em comum. É nessa energia patética – no sentido pleno dessa palavra, fundada na ideia de um pathos expressivo – que uma emoção contagia a cena e se projeta também para o espectador, convidado a participar dessa mesa, com a condição de que também se deixe alterar pelas intensidades dos corpos dos outros.
Ezequiel nos ensina algo sobre como lidar com esses corpos distantes e torná-los próximos, sem perder suas singularidades. Mais ainda, ensina como arriscar-se em uma aventura com eles para outras regiões espaciais e cósmicas. Como se fosse preciso se deixar transportar pelo mundo que bate à porta. A hospitalidade na própria casa se transformará em aventura de viajantes. Por um lado, a solução da viagem psicodélica pode gerar uma dúvida quanto aos próprios modos de lidar com o invasor policial – hipótese rápida, que vem à mente se olharmos esse aspecto da narrativa apenas pela lógica de uma fuga cifrada. Mas, por outro lado, caberia interpor a essa dúvida um outro movimento. Parece que, ao sermos transportados para um planeta distante, é nosso modo de olhar mesmo que agora precisa ser radicalmente alterado. Se, inicialmente, acompanhávamos como a casa de Ezequiel recebia os visitantes, agora somos cobrados a adotar, mais intensamente, a perspectiva mesma desse mundo outro que faz visita.
Há quase uma postura etnográfica para se relacionar com um planeta distante, marcada por uma espécie de perspectivismo fabular, como se fosse possível perceber uma paradoxal relação com o real nesse momento marcado pela imaginação. Vamos da acolhida na casa para o mergulho nas materialidades alteradoras do longínquo. Não é mais um corpo estrangeiro que tem sua singularidade assinalada por contraste entre sua figura e o entorno, mas é todo o mundo ao redor que agora se transformou – e com ele, o próprio modo de ver e ouvir. Mais uma vez, é uma lição dessa espécie de parábola profanada e profanadora, dessa narrativa de um estranho caso: o planeta distante de O estranho caso de Ezequiel nos leva a outro patamar dessa ética da relação e dessa costura das alteridades, porque nos instiga a pensar o que se passa entre, o que se altera justo quando um beijo produz lampejos radiantes.
Esse aprendizado possibilitado pelo filme instiga aqui para certa reflexividade em torno deste ato mesmo de escrever na companhia de um filme. Talvez seja possível pensar um pouco como o trabalho da crítica se constitui no lugar mesmo de espectador, lugares que são indissociáveis. Nesse sentido, a escrita se mobiliza pelo que vem do filme para tocar o corpo – uma cena, uma cor, um gesto – e, mais importante ainda, é inseparável da palavra que se produz em trocas constantes fora da sala de cinema, ativadas pelo filme e em meio ao fundamental elo entre filme e mundo. Seria preciso, então, assumir aqui um limite e uma postura: parto de uma relação muito específica com uma cena do filme de Guto e tento dizer como ela se insere no corpo mais amplo do filme, como ela me mobiliza a pensar certa ética da relação. A possibilidade de fazer essas costuras se dá tanto por conta do que o filme traz ao mundo quanto pelo ressoar de muitas conversas nesse mundo mesmo – palavras postas em trabalho, a respeito do cinema e da relação com o outro, tecidas com interlocutores fundamentais, especialmente Elena Meirelles, Jorge Polo e Lívia de Paiva.
Esse breve momento de escrita reflexiva tenta dizer o seguinte: o trabalho das palavras, na companhia do filme, é inalienável do sentido que a obra atinge no entrelaçar de conversas e de reverberações junto a uma comunidade de espectadores, junto a vizinhos e vizinhas que recompõem, nas suas palavras e seus gestos, uma relação possível com as imagens e sons. É por isso que interessa pensar esse trabalho de estar junto ao filme, tanto de um modo imanente – é preciso pensar o que o filme constitui, na sua especificidade – quanto na abertura para considerar que não existe nenhum objeto em si mesmo, mas sim todo um itinerário que dele deriva e que, a partir dessa travessia, se transforma em muitos mundos possíveis. Mais do que a simples polissemia ou a abertura relativista de sentido, a questão é pensar que não caberia ao crítico um gesto interpretativo de uma obra: talvez seja tanto mais interessante ver-se entrelaçado em uma rede, em permeabilidade com os modos de circulação das emoções no seio de um ver junto. A lição de hospitalidade de Ezequiel é muito cara para nossos tempos.