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DESAFIOS DA ELABORAÇÃO HISTÓRICA

Currais (2019), de David Aguiar e Sabina Colares

6 fev. 2019

Por Érico Araújo Lima

É preciso dizer, de saída, que a empreitada tomada por Currais, de David Aguiar e Sabina Colares, se carrega de uma urgência fundamental. Retomar um episódio histórico de violência tremenda, a instalação no Ceará de sete campos de concentração, durante a seca de 1932, manifesta uma necessária tomada de posição em um processo de elaboração da história e da memória coletivas.


O encurralamento de populações, que migravam do sertão para a capital, acontecia nas áreas chamadas então como “currais”, campos colocados em lugares estratégicos, para evitar a chegada das populações empobrecidas à cidade de Fortaleza. O processo de distribuição desigual das consequências da seca era associado, então, a uma política de isolamento e morte conduzida pelo próprio Estado e pelas elites locais: nos campos, os sertanejos eram confinados e recebiam porções mínimas de comida, enquanto eram colocados a trabalhar. Multidões encurraladas em pequenas áreas foram postas, por exemplo, na construção de barragens, como a do Patu, em Senador Pompeu, um dos fios da rede que o filme trabalha para tecer. No campo localizado nessa cidade, como revela Pedro Raimundo, um dos moradores que retomam a história para o filme, chegaram a ficar 15 a 20 mil pessoas em um raio de 3 km, uma população superior àquela que habitava o próprio município de Senador Pompeu na época.


Processo marcado por uma política de extermínio e de segregação com ecos da experiência de períodos anteriores e com reverberações no depois, no agora, a realidade concentracionária na história cearense desponta, de imediato, como uma parte pouco estudada em nosso processo social, sendo decisiva para a própria organização urbana da cidade de Fortaleza – como deixa evidente, sobretudo, o livro seminal de Kênia Rios, “Isolamento e poder: Fortaleza e os campos de concentração na Seca de 1932”, do qual o longa-metragem de David e Sabina recolhe matéria histórica e trilhas para a sua busca.


Tarefa ética e política de importância crucial, o trabalho de escavar os escombros do passado se configura como um gesto para a própria compreensão dos desafios em jogo no presente – e por essa via, torna-se uma maneira contundente para mobilizar esforços de reparação histórica e de enfrentamento diário das persistências das políticas de morte em nossa sociedade. Esse exame analítico da historicidade de um regime de violência é ainda uma forma de contrariar as forças sociais que, em variados períodos e por diferentes maneiras, se empenham em apagar os vestígios dos processos criminosos cometidos pelo Estado e pelos grupos sociais privilegiados, extermínios que, como sabemos, têm uma escala histórica bastante larga na construção social brasileira. E haveria ainda uma força particular dos esforços de analisar formações históricas, justo nestes tempos em que vivemos, quando testemunhamos flagrante e sintomática intensificação dos discursos de negação e silenciamento de memórias traumáticas – senão de uma verdadeira tentativa de reescrita da história, a partir dos interesses dos opressores, torturadores e carrascos, bem como da perpetuação de seus privilégios.


Cláudia Mesquita já escreveu textos fundamentais em torno dos trabalhos das formas fílmicas “como espaço de elaboração de experiências e formas históricas”, especialmente diante desse cenário que se agiganta, marcado pelos negacionismos. Em um artigo recente no qual coloca em cotejo alguns filmes brasileiros, a autora destaca o empenho do cinema em contribuir para um processo de elaboração em torno do que foi vivido. “Podemos compreender a atual crise democrática como evidência, na sociedade brasileira, da permanência de um histórico de não elaboração de traumas passados. Nesse contexto, o cinema e outros artefatos culturais podem desempenhar papel constitutivo na elaboração e transformação da memória pública, fazendo-se espaço de reflexão sobre o vivido e instrumento contra o negacionismo e o apagamento das memórias de violências passadas”. Ao cinema, essa tarefa desponta, então, como uma força política e estética, e também, sem dúvida, como um constante desafio, esse de articular os trabalhos das formas fílmicas aos dos embates com os tempos históricos.


Situar as operações de Currais nesse horizonte de disputas em torno da memória me parece importante para considerar frentes de contribuição do filme, que são também sempre articuladas aos dilemas de lidar com o processo mesmo de elaboração a partir dessas memórias traumáticas. Uma das riquezas do longa reside, certamente, em um trabalho de pesquisa denso, que recolhe arquivos (matérias de jornais, relatórios oficiais, fotografias e filmes do período focado), testemunhos de sobreviventes, de familiares que contam as experiências dos antepassados ou de outros moradores que guardam essa memória, que circula como fantasma pelos espaços. Na articulação de um vasto material, manifestado na escritura de modo direto (como na convocação das imagens de arquivo e dos textos de jornais) ou indireto (como na construção dramatúrgica de personagens a partir dessa pesquisa), o filme investiga modos heterogêneos de traçar seus itinerários em meio a essas histórias.

Sem pretender aqui esgotar a variedade de estratégias formais de que lança mão o filme, valeria apontar para, pelo menos, quatro gestos que se articulam na escritura, surgindo em distintos momentos. O primeiro é, de imediato, aquele já evidenciado pela própria sinopse da obra, que afirma a existência de um “personagem-dispositivo”, Romeu, vivido pelo ator Rômulo Braga. Ele traça um itinerário pelo sertão em busca dos vestígios da história dos campos de concentração no Ceará, a partir das pistas deixadas em fitas gravadas pelo avô, que atravessou no corpo essa experiência.


Romeu, personagem disparado pela ficção, atua como um mediador para a aparição dos materiais pesquisados para o filme, sobretudo a partir da memória do avô, e costura ainda a aparição dos encontros que o filme estabelece com moradores de regiões em que existiram campos de concentração. Como se fizesse, em alguma medida, as vezes da equipe de realização, que estabeleceria entrevistas e coletaria testemunhos, Romeu abriga a ficção para indagar os sujeitos filmados sobre suas memórias, além de produzir especulações sobre os elos entre passado e presente ou sobre a compreensão de si mesmo nesse processo, em momentos que tangenciam uma tonalidade mais existencial e subjetiva, diante da história coletiva. Com certo grau de reflexividade, ela não deixa também de expor ao espectador uma parcela do seu próprio papel de mediador, quando, por exemplo, recolhe rastros no chão, como o dormente de um trem, e se põe a elucubrar, em um gravador, a respeito da própria tarefa de escavar memórias.


O segundo gesto que compõe a escritura do filme diz respeito a outro arco dramático, dessa vez no bairro do Pirambu. Se Romeu faz seu trajeto de Fortaleza a Senador Pompeu, com passagem por Quixeramobim, é Ivan (Vitor Colares), amigo de Romeu, e a personagem vivida por Débora Ingrid que vão desenvolver um trabalho de exame de arquivos junto a Dira (Zezita Matos), que se revela uma arquivista da experiência dos campos de concentração e permite ao filme fazer o elo fundamental entre o processo vivido no interior do Ceará e o de Fortaleza, onde também se fez presente a experiência concentracionária. Aqui também a ficção abriga o arquivo, em meio a cenas de conversação entre esses personagens. Fabulados pelo roteiro do filme, eles agregam, nessas interações, os elementos do vivido por outros corpos, como recurso para expor ao espectador parcelas de arquivos e de contextualizações a respeito da experiência histórica.


É em meio a esse arco dramático criado em Fortaleza que o filme passa, então, a um terceiro gesto, mais deslocado dos outros dois, e que revela, especialmente, uma autonomia maior do trabalho de montagem. Se até aqui elementos visuais e sonoros que remetiam diretamente ao passado já habitavam a cena, convocados, no mais das vezes, pela mediação dos personagens de ficção, em dado momento, o filme se permite abandonar um pouco mais essa modalidade de aparição do arquivo e abraçar o trabalho da montagem, que passa, então a associar mais livremente testemunhos de outros moradores com essas cenas da ficção, nas quais são lidos relatórios médicos e visualizadas fotografias. Em dado momento, um paralelismo se intensifica e passa a se estabelecer entre o itinerário ficcional dos personagens que visitam uma fábrica no Pirambu, enquanto leem alguns materiais, e a conversa entre dois moradores do bairro, José Airton e José Maria, enquanto estes visionam e comentam fotografias da época dos campos, também acionadas pela montagem para encher a tela.


Finalmente, um quarto gesto dirige o registro do filme para uma abordagem performática, a partir da transformação do ato de escavar em movimento bastante material junto ao chão, quando Romeu chega a cobrir o rosto de terra, logo após manuseá-la, dispondo fotografias no solo, em uma atmosfera que acentua o trabalho de artifício da cena e que já em tudo se desloca das tonalidades contidas até então. Esse instante vai culminar na tentativa de evocar um pedaço da situação vivida, quando vemos em uma estação de trem um grupo de atores terem as cabeças raspadas e serem vestidos da maneira como eram colocados os sertanejos nos campos, como já indicava o relato de um dos moradores de Senador Pompeu, em uma das conversas com Romeu.


Em meio a essas estratégias distintas, Currais investiga uma possível condução e ativação da experiência histórica (dos arquivos e testemunhos que a carregam) no seio da ficção, esta que busca ser uma espécie de fio condutor, tanto para permitir ao filme um diálogo com o espectador, quanto para possibilitar uma relação material com vozes e rastros, a ligar o presente com o passado. Essa medida de relação é desafiadora enquanto processo de realização e de busca, e eu tentaria aqui propor alguns impasses e limites que o filme parece encontrar (tendo sempre por horizonte sua contribuição e potência fundamental), menos para propor uma forma que lhe coubesse melhor do que aquela que lapidou do que como conversa – desde um lugar de quem sugere um conjunto de preocupações diante dessa empreitada tão importante e de quem compartilha inquietações diante da experiência histórica cearense e da realização cinematográfica.


Vou, então, destacar alguns pontos, que são muito mais anotações provisórias, em meio a uma variedade de outros aspectos ainda em elaboração junto ao filme, que poderão surgir em outras oportunidades. Essas questões desdobram um primeiro momento de proposições lançadas durante debate em Tiradentes deste ano, quando o filme foi exibido, e se alimenta, sem dúvida, das conversas naquela ocasião, tanto com a equipe do longa quanto com o público que trouxe questões densas e fundamentais para a discussão.


Um desafio que parece se materializar na escritura de Currais vem, de imediato, da posição de exterioridade em relação aos lugares filmados, especialmente se pensarmos no município de Senador Pompeu e no bairro do Pirambu, em Fortaleza. Sem considerar isso uma barreira, mas um elemento de responsabilidade para a composição de uma escritura, o filme lida com uma inevitável distância em relação às pessoas encontradas em sua busca, estas que podem contar pedaços de uma história, por serem sobreviventes ou por carregarem as heranças de um passado traumático.


Numa tal situação, a tarefa é, pelo menos, dupla: reconhecer essa distância constitutiva e inalienável entre quem filma e quem é filmado – donde vem a necessidade fundamental de criar dispositivos para que a experiência seja narrada por quem a viveu; e ao mesmo tempo, buscar estratégias de aliança com uma experiência do outro – um modo de disponibilizar o próprio trabalho, esse de fazer um filme, com o trabalho de sujeitos e grupos que já se empenham, antes do filme, em narrar e elaborar sobre uma experiência de dor. Sabemos o quanto a história do cinema tem nos mostrado um conjunto de densos processos de colaboração para constituir relação em meio a uma não-coincidência de mundos entre quem filma e quem é filmado, especialmente nessa envergadura histórica: no caso do cinema brasileiro recente, essas operações têm nos mostrado a necessidade de um trabalho árduo, de um esforço contínuo e de um constante aprendizado. Cada filme, certamente, impõe sempre empreitadas singulares para a invenção de traçados.


Dessa maneira, junto à empreitada da elaboração histórica, que envolve a lida com o passado, Currais está às voltas com outro terreno carregado de exigências éticas: é preciso pensar, a cada gesto, o que pode um filme diante da dor do outro. Elaborar constantemente em torno dos limites e possibilidades nessa arena não é tarefa fácil, mas um desafio imenso, que certamente não pode impor soluções rápidas – nem para quem se coloca a fazer uma imagem, nem para quem se coloca diante das escolhas contidas nessa fabricação.


Na opção central ao filme de tomar o personagem de Rômulo Braga para conduzir a busca pelos vestígios de uma história traumática, poderíamos perceber uma operação que tem momentos de consequências fortes, especialmente pelo alinhavo que o dispositivo permite fazer. Simultaneamente, a sensação de algumas fraturas nesse método parece se impor, na medida em que ele se delineia. Essa impressão se acentua especialmente quando a evidência de uma ficção não compartilhada plenamente entre os sujeitos da cena se marca nos silêncios e nos registros distintos que parecem assumir as presenças de quem habita a imagem.


A interação entre Romeu e cada pessoa que ele encontra fica marcada por um jogo de oscilações. Evidentemente, sabemos que, numa imagem, uma pessoa filmada já inscreve uma presença por força performática, por uma mise-en-scène de si mesmo que permite elaborar-se como ficção e inventar-se na imagem: nesse sentido, de saída, não só Romeu irá encenar a cada encontro, mas cada um daqueles que o recebe. Mas o acontecimento de uma cena depende, necessariamente, da medida de construção e de trabalho investidos no pacto e na negociação entre quem chega, vindo de fora, e quem acolhe, para contar suas histórias. No caso particular do dispositivo criado por Currais, a interação precisa ativar não só a rememoração, mas a própria cadência desse jogo que o filme propõe para abrigar um trabalho de memória.


A busca desse tom é, certamente, um processo de lapidação. Na conversa travada entre Romeu e Chico da Barragem, esse enlace entre corpos e vozes, entre as dramaturgias de memória elaboradas entre os dois, ganha talvez uma das suas efetivações mais ricas. Chico expõe questões bastante caras à busca do filme, especialmente ligadas aos elos entre passado e presente, e se apresenta em cena com uma energia que parece conhecer ricamente tanto aquele espaço de espíritos que rondam quanto a força do plano cinematográfico.


Já a dimensão tateante dessa elaboração ficcional tem sua expressão particular, em alguma medida, na conversa entre Romeu e Rauíres, que teve familiares em um dos campos de concentração. Se Rauíres traz à tona aspectos fundamentais para nos alçar à experiência traumática vivida em Senador Pompeu, o filme se vê diante do impasse para encontrar uma medida de relação que se faça mais efetivamente com ele, que partilhe com o personagem mais plenamente o próprio ato daquele encontro que demanda atualizar numa cena de cinema a memória densa de um relato sobre a morte. Romeu ensaia uma fala reflexiva a respeito dos ecos entre passado e presente, como quem pensa alto e lança uma pergunta em meio à conversa. Diante da questão posta em tom especulativo, Rauíres permanece em silêncio e, alguns instantes depois, introduz um diálogo que parece ter dimensão mais roteirizada, porque lança para a cena uma primeira menção sobre a personagem ficcional vivida por Zezita Matos.


A conversa entre Romeu e Rauíres parece expor justo os impasses do dispositivo. Nesse silêncio, uma fenda parece se impor – e não se trata de uma distância em relação à questão colocada e de sua evidente importância, mas parece haver uma sintomática dificuldade da própria equipe (afinal, Romeu é, em larga medida, a expressão ficcional de uma equipe que busca indagar memórias em um espaço outro) em entender como adentrar as tramas das memórias do outro, as suas maneiras de narrar, a sua própria condução do fio de uma história.


Tão importante quanto recolher o testemunho é pensar como se relacionar com aquele que recorda e expõe a dor coletiva e individual, para além de toda informação – uma relação que precisa ser travada como postura ética fundamental diante do outro, para criar uma forma de acolhida à voz e à elaboração sobre o trauma. Se todo dispositivo está sempre submetido a limites – e o cinema brasileiro recente nos legou muitas obras nas quais é o próprio fracasso que se torna motor de dispositivos diversos – aqui parece que a fratura não mobiliza o filme a pensar suas próprias condições de exterioridade, a se colocar reflexivamente ou a se reposicionar. O fio condutor segue na mesma toada: e se destaco isso, é porque me parece fundamental que a experiência do filme se marque mais pelos chamados que o real e que o rosto do outro lhe faz. Uma impressão que surge, em alguns momentos, é que as condições que o filme estabelece para si o fazem caminhar sem se permitir arrastar pelo que vem no caminho, tanto pela força dos testemunhos quanto pela própria potência dos arquivos. Certamente, o chamado da história é já uma lasca de real que desencadeia e contagia o projeto, mas o que parece ser desafiador na efetuação da busca é o processo de costurar a escritura num gesto que permita acolher testemunho e arquivo de modo mais distante da medida que o filme encontra antes e mais pela medida que essas duas forças indicam no processo.


Essa questão formal concerne a uma discussão mais ampla, de envergadura ético-política, digamos assim. Ela tem a ver, especialmente, com a tarefa necessária de indagar sobre uma maneira cinematográfica capaz de se colocar diante de uma ferida coletiva – questão, sem dúvida, imensa e de elaboração sempre incompleta, que ao cinema não cabe resolver, mas tomar como horizonte de preocupação, quando essa tarefa bate à porta. Em Currais, quando a montagem associa mais livremente os arquivos, cenas de ficção e conversas de dimensão testemunhal, outra interação chama a atenção, aquela entre dona Francisca e seu neto, Luiz.


A introdução desse instante guarda um fio tênue com as conversas entre Ivan e Dira, no Pirambu – Luiz chega a mencionar para a avó que conseguiu algumas fotos dos campos com seu amigo Ivan. Como se a ficção retornasse à cena testemunhal um material de arquivo – interessante e sutil reversão de vetor que o filme opera aqui, em relação às bases de sua estrutura, mais ligada ao caminho de um arquivo que se torna matéria para a ficção – passamos a acompanhar as interações entre uma sobrevivente dos campos e seu neto, de modo intercalado à cena da conversação na casa de Dira, com as fotos manuseadas tanto em uma quanto na outra ocasião.


Nas cenas com Dona Francisca, devo dizer que algo se agiganta como questão. A marca desse testemunho no filme me parece decisiva: estamos diante da fala de uma sobrevivente que retoma a história que viveu no corpo e nos conta sobre essa experiência com extrema força na cena. Mas aqui também, há algo no modo como o filme aciona essa fala que revela um terreno delicado e complexo na sua caminhada. Francisca diz algo sintomático, logo quando as fotos marcadas pela dor começam a ser expostas a ela pelo neto: “Quando eu durmo e fecho os olhos, eu vejo tudim”.


A frase já chama a atenção para a inquietação mesma de como lidar com essas imagens diante dos olhos de uma sobrevivente, daquela que experimentou no corpo aquele sofrimento que chamuscou as imagens. Se aquele sofrimento já é tão presente no corpo dela, ao fechar os olhos, é difícil acompanhar a cena, sem deixar de supor – e apenas, fragilmente, supor – a dureza de uma revisita a esses arquivos que dão à violência uma materialidade visual de natureza distinta das imagens que Francisca já carrega consigo, ao fechar os olhos.


Não cabe aqui qualquer interdição de uma fotografia como forma para mostrar determinado acontecimento (debate que sabemos já bastante longo em muitas arenas de discussão em torno do imaginável e do inimaginável, do representável e do irrepresentável). A questão talvez recaia mais no lugar dado ao arquivo visual pela própria mise-en-scène fílmica e pelas escolhas de articulação dele no presente. Sem dúvida, essas matérias que o filme articula são de importância fundamental e precisam, sim, ser guardadas, preservadas e mostradas, como o faz Dira – que protegeu as imagens do desaparecimento, gesto obstinado de preservar uma memória, diante das forças que poderiam apagá-la. A questão a se colocar, sem qualquer pretensão de resolução, é como articular essas imagens numa mesa de montagem – e, especialmente, como retomá-las junto àquelas e àqueles que já as guardam na memória, no ato mesmo de fechar os olhos.


O filme reconhece muito bem a força da palavra como elo fundamental para compor-se com toda imagem. Mas nessa tarefa tão complexa de tomar imagem e palavra nas suas mútuas colaborações, seria interessante talvez pensar enquanto potências as naturezas lacunares de ambas, sem que nenhuma delas precise ser completada ou suprida pela outra, ainda que as articulações criadoras entre elas sejam ricas de consequências – e nisso relembraria aqui algo que me parece bastante importante na fala de Patrícia Machado durante o debate sobre o filme em Tiradentes, quando ela destacava justo o caráter lacunar de todo arquivo.


Diante dessa potência da lacuna, nem a imagem precisa ser apenas ostentada ao olhar de uma sobrevivente para acionar sua palavra, nem caberia reduzir a voz ou o texto escrito à tarefa de explicação para uma imagem na tela. Paradoxal operação de uma montagem: nem imagem nem palavra são absolutas e podem, por isso, tecer entre si provocações variadas para arranjos complexos, mas essa contaminação cruzada enfrenta sempre a tarefa de se assumir como composição que não busca nem o trabalho do complemento nem a lógica da junção – saindo dessas chaves, talvez fosse possível elaborar algo como uma medida entre palavra e imagem que assume justo a desmesura entre ambas.


Desafio fundamental de trabalhar os arquivos da dor, que Currais enfrenta, sem dúvida, de modo corajoso, uma vez que embrenhado em riscos. Articular essa experiência que marca nossa história é também colocar-se em terreno de uma responsabilidade com os materiais mesmo que a evocam e com as pessoas que a atravessaram ou que tiverem seus antepassados nela implicados. A contribuição de Currais para fazer eco a uma luta contra o silenciamento é fundamental. Diante de todos os desafios inescapáveis de uma aproximação às existências implicadas nessa história, a tarefa abriga dilemas inevitáveis de um empenho em afirmar a necessidade cotidiana de recusar os apagamentos e de insistir, a cada tentativa, na urgência de elaborar sobre violências históricas, como maneira de trabalhar constantemente no combate a elas em nosso presente.

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