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Por um cinema menor

O cinema é meu playground, de Solon Ribeiro

Habitar os entremeios, os espaços que ainda não podem ser nomeados concretamente, mesmo que se tenha iniciado de uma linguagem já conhecida. A Ex-posição O cinema é meu playground, de Solon Ribeiro, instalada no Museu de Arte Contemporânea do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (dez/2013 a mar/2014), parte da linguagem cinematográfica e de suas imagens para fazer desta outras possibilidades. Aqui, há um caso de cinema menor. Este não é assim adjetivado por ser menos importante, mas por se colocar frente a uma linguagem dominante como desvio ao traçar linhas de fuga através das imagens. No texto O que é uma literatura menor?, os filósofos Deleuze e Guattari encontraram um gesto de torção ao se debruçarem sobre a obra de Kafka. O autor, tcheco e judeu, exercia sua escrita em alemão, porém fazia desta língua maior um uso que a revolvia contra si mesma continuamente para encontrar intensidade/diferença. É nesse movimento que o artista cearense insere o cinema.

Esta obra é mais um momento de apresentação ao público de um trabalho processual que Solon Ribeiro vem desenvolvendo desde 2005, em O golpe do corte (Centro Cultural Banco do Nordeste), com os fotogramas herdados da coleção de seu pai. As imagens extirpadas da totalidade das películas evocam a presença do cinema, porém este não se apresenta mais em sua configuração narrativa, representativa e espacializada em sala escura. Do contrário, ao torcer o cinema hegemônico, Solon Ribeiro liberta as imagens para as mais variadas associações, distorções visuais e sensações. Trava-se um jogo – não é à toa a alusão ao playground –, que remete o autor às brincadeiras da infância no Crato, quando construía projetores artesanais com seus irmãos e podia entrar e sair das sessões de cinema sem estabelecer distinção entre os mundos fantásticos da tela e da feira de rua. Também não é por acaso que se tenha escolhido chamá-la de ex-posição. Não há mais bases fixas, os dispositivos são modificados e as imagens são liberadas para serem reencontradas em zonas de penumbra da investigação. Quanto mais se adentrar na escuridão da experiência contemporânea, mais veremos as luzes destas imagens. E quanto menos soubermos onde estamos, mais elas poderão se mostrar potentes novamente.

Há um gesto diferente daquele realizado pelo pai do artista, que, ao remover os fotogramas de sua sequencia fílmica e os organizar em álbuns, agia enquanto colecionador interessado em manter a imagem presa ao seu contexto inicial, como uma lembrança, um signo de um filme já visto. Para Solon Ribeiro, a aura que estas imagens carregam é deslocada em outras configurações, não por serem objetos únicos, posto que advêm da reprodutibilidade técnica, mas pela força da presença das ‘estrelas de Hollywood’ e de todo imaginário do cinema clássico. São privilegiados dispositivos que se atrelam à ideia do precário: impressão das imagens em tecido ao invés da qualidade de uma ampliação fotográfica, seja para vesti-las ou para expô-las emolduradas; construção de projetores caseiros, feitos com bulbo de lâmpada incandescente, água e madeira crua; mini backlights improvisados com luzes de led; monóculos pendurados em fios de nylon, entre outros. Assim como no uso da palavra ‘menor’, o termo ‘precário’ não indica sentido pejorativo, tratando de apontar para fora do uso da perfeição técnica como validação artística ao indicar pontos de subdesenvolvimento plenos em desterritorialização.

O jogo de Solon Ribeiro não é solitário. Passa de sua realização ao variar arranjos de visualização das imagens para a experiência do espectador. De fato, também é uma experiência física – deslocar-se, abaixar-se, ficar em ponta de pé, entrar em sala absolutamente escura, aproximar-se ao máximo da imagem para vê-la, etc -, mas se compõe muito mais como uma provocação ao olhar. A experiência visual não deve ser atrelada à passividade ou muito menos à falta de saber. Solon Ribeiro propõe ao público situações nas quais compartilha o terreno híbrido em que se instala, estendendo a brincadeira para que estes, ao jogá-la, também possam levar essas imagens para outros horizontes de ressignificação.

Portanto, a ex-posição de Solon Ribeiro não anuncia a morte do cinema, mas, politicamente, pelo deslocamento das imagens em inúmeros dispositivos, pela verve fabulatória de seus fotogramas, e pela topografia comum estabelecida entre autor e espectador, compõe outras possibilidades de invenção. Um devir-cinema-menor que não se pode aprisionar em ontologias e justo por isso se faz em intensidade.

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