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De um lugar inquietante

No lugar errado (2011), de Guto Parente, Pedro Diógenes, Luiz Pretti, Ricardo Pretti

Limiar: a constituição de cenas como lugar de intervalo. Entre a cena fílmica e a cena teatral, o que se abre? Um gesto-cinema vai se construindo na relação de encontro com o teatro. No lugar errado (Guto Parente, Pedro Diógenes, Luiz Pretti, Ricardo Pretti, 2011) lida com uma singular operação de trânsito e elabora uma escritura fílmica que se efetua numa zona de passagem. E diante de toda a potência dessa região aberta de possíveis, cabe ir além de uma postura tão cara aos modernos que busca afirmar a especificidade de uma arte ou os próprios de uma linguagem. Tomando a obra como inserida em um regime de artes distinto daquilo que se poderia chamar modernidade, vale propor como a área do interstício contribui justo para relançar hierarquias, redistribuir lugares, embaralhar os problemas cinematográficos e os problemas teatrais.

Na desfiguração de lugares marcados, será preciso constituir gestos de observar, de encontrar e de se aproximar dos corpos em cena. Será preciso, fundamentalmente, inventar uma dramaturgia sensível às múltiplas possibilidades de arranjo dos seres colocados sob um foco de luz, em um palco de teatro, com detalhes mínimos para compor o cenário. Esses gestos de filmar formulam distribuições pelo espaço, fragmentam corpos, instalam modos de imagem entre o ver e o não ver, região crepuscular da iluminação rarefeita. É assim que podemos ver somente pernas que se encontram, dançam, se erguem. Observamos uma personagem sair para o fundo e desaparecer no escuro, enquanto acende velas que revelam a própria presença lá longe, notada pelos pequenos pontos luminosos. Assistimos a um personagem que cai no chão depois de dançar um pouco e nos deixa com a tela negra por um tempo, um escuro que nos envolve e nos olha.

A dramaturgia, nesses casos, vem incidir, sobretudo, numa maneira de pensar os corpos na cena, num modo de engendrar, com o corpo do ator, figuras relacionais. Cada um torna-se componente de uma escritura cênica, num jogo de variações pautado por uma liberdade para percursos, por certa abertura ao risco e ao que pode escapar aos programas. A todo o momento, cabe tomar o filme e pensar: como constituir uma tessitura dos seres que povoam a tela? Eles enlaçam redes, que se revelam, em muitos momentos, conflituais, marcadas por desacordos, provocações, tensões que se encaminham para pontos de limite. O longo plano fixo final coloca essas questões com bastante força, jogando com mudanças imponderáveis do curso, com uma composição que nos torna próximos de um conjunto de acontecimentos no primeiro plano, enquanto outras situações podem se dar ao fundo.

Ao mesmo tempo em que essa composição com corpos tem destaque, parece haver também relances de uma psicologia dos personagens. Numa linha que assemelha estar já distante de Estrada para Ythaca e Os Monstros, aqui parece ser importante para os diretores construir com mais elementos seus personagens, indicar que eles têm um passado, pautar as conversas por aspectos que poderiam remeter a certa interioridade e pessoalidade. Nas duas obras anteriores que os realizadores fizeram juntos e mesmo em trabalhos em que não estavam todos reunidos, parecia ter mais relevo a presença dos corpos na cena. Ythaca e Monstros pareciam guiados pela força de desejos em descobrir trajetos em aventuras. Na dramaturgia de No lugar errado, saber informações sobre as vidas dos seres em cena parece ter uma importância para a estratégia escolhida, como quando nos é indicado, por exemplo, que Fred tem sentimentos por Nanda, que agora namora Beto. Esses lampejos de uma vontade de ir além das superfícies são confrontados quando tudo volta a se dar na pele, no cinto que bate no corpo, nos closes dos rostos que trocam apenas olhares, na violência que se exacerba durante a sequência final. E nas superfícies se dão acontecimentos.

São conflitos internos ao próprio ponto de limiar, de tensão entre cenas, entre métodos e entre linguagens. Tensão entre uma marcação maior que tenta afirmar escolhas cinematográficas na sua suposta especificidade e um improviso, que diz respeito não só à atuação, mas à própria incerteza daquilo que a criação pode movimentar, do lugar para onde ela pode levar. O ter lugar do cinema só se pode efetivar sob a condição de um falso lugar, um lugar em falso, que já não pode mais ser nem o de uma linguagem pura, nem o de uma arte com elementos definidores gerais. Já Estrada para Ythaca e Os Monstros, na investigação sobre a amizade mobilizadora do próprio processo de produção, eram filmes que se tornavam pesquisas sobre as próprias condições de possibilidade para a arte e para a vida. Como na cena de Ythaca que citava Glauber Rocha na encruzilhada de Ventos do Leste, trata-se de buscar caminhos e, nesse percurso, inventar bifurcações. No lugar errado traz novos elementos para essas investigações e tece uma cena em região de inquietude e de perturbação. O cinema se dá, então, como arte impura, porque permeável à contaminação com outras cenas, outras dramaturgias, outros possíveis. E inquietar-se no entre é um dos prazeres de não poder estar em lugar certo.

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