Mixtape Dois Irmãos, de Juliana Siebra e Henrique Gomes
1. Do desejo de partilhar. Talvez uma justa razão para escrever sobre cinema poderia ser assim enunciada: trata-se de manifestar, no gesto da escrita, um desejo duplo – de um lado, o de dialogar com as formas inventadas pelos filmes (e nisso, também com os realizadores), e de outro, o de partilhar com um leitor virtual uma experiência estética que gostaríamos de ver reverberada, aquela de assistir ao próprio filme colocado em conversa no trabalho da escritura. Este texto surge, em grande medida, dessa dupla vontade. Há aqui um declarado propósito de traçar uma aproximação com a pesquisa disparada por Mixtape Dois Irmãos, de Juliana Siebra e de Henrique Gomes, e de construir, a partir desse curta-metragem, um possível gesto de envio, como quando jogamos para o outro uma música, um filme, uma pintura, que nos parecem muito singulares e que gostaríamos de, nesse apresentar ao outro, poder fazer, com ele, interlocução.
2. Inaudito efeito de mixtape. Esse trabalho de Juliana e Henrique, feito no contexto formativo da universidade, aponta para uma vigorosa e atenta aproximação ao mundo do outro, a um território não conhecido e também às possibilidades formais do próprio cinema como articulador do encontro entre diferentes. Avizinhar-se de um bairro e dos sujeitos filmados adquire aqui um método musical que se torna fundamental na produção de uma heterogeneidade de variações sonoras, arranjadas em trama com os percursos visuais. É como se a travessia por uma vizinhança pudesse adquirir toda uma nova cadência a partir dos sons que a escritura faz incidir na cena. Mas aqui essa experiência sonora não apenas pontua momentos, ela dispara o drama inusitado que pouco a pouco emerge dos corpos em quadro e das relações sensíveis entre aquilo que se vê e aquilo que se escuta.
O filme se configura, então, segundo o tom de uma empolgante jornada de dois irmãos noite adentro, como se fossem viver uma grande aventura em que algumas pequenas subversões são postas em tensão com os holofotes do poder. Se não há diálogos verbais entre os seres filmados, é porque a palavra não é aqui a mediadora prioritária, e o interesse se transfere muito mais para a tarefa de acompanhar os gestos, olhares e movimentos desses personagens, modulados segundo as escalas e intensidades das músicas convocadas. Na interpolação entre um rosto, ou um gesto, e uma operação musical da escritura, o filme faz surgir, das franjas de uma cidade à beira das decolagens de aviões, uma forma dramatúrgica em mixtape, intensa mistura de linhas de força, em que a emergência da cena se abre à brincadeira e à pausa para um biscoito recheado. O registro do real se deixa perfurar pelos fios de uma trama muito tênue, que introduz uma distância sensível em relação a qualquer abordagem mais marcada pela observação.
A experiência fugidia e quase clandestina das ações se decanta como ritmo e recombinação dos corpos pelo espaço. De um lado, o espectador testemunha um íntimo interesse pelo mundo vivido, pelas marcas, curvas e escalas de preto e branco de uma cidade, mas de outro, é posto em desconcerto, convocado a se relacionar com a inusitada força de ficção que pode ser instaurada nos trajetos de bicicleta de Antonio Filho e Leonardo Rocha. É quando o cinema adentra a vida do outro, no seu pequeno, mas vital, modo de enfrentar o mundo, acolhendo, na escritura, a ficção que transborda dos corpos postos em quadro. Se a experiência vivida nos deixa rastros sobre as táticas de percorrer as ruas de uma cidade, ela pode também se tornar sempre mais renovada a cada gesto de imaginação, de decupagem e redecupagem da cena, como se do real pudesse brotar uma ficção capaz de permitir a mixagem da vida com a vida. Dois irmãos a viver em mixtape.
3. Preben goes to Acapulco. O cinema, como a música, faz transporte. Com Mixtape, descobri sons.
4. Uma imagem que me engaja. E guardei essa imagem,
para um dia enviar a alguém.
5. Do gesto de ver com o corpo todo. Na imagem cheia de ruídos, a adensar a ação de percorrer com os dois personagens as miudezas da noite, vem à tona a estranha atmosfera de uma espécie de filme de aventura crepuscular. É como se a jornada na qual os dois se embrenham retomasse, em desvio, motivos visuais do gesto de desbravar um espaço, de errar pelo mundo e de oferecer-se à envergadura dos perigos da noite. Só que aqui estamos em uma tonalidade ainda mais precária, que engaja o corpo na própria criação da cena. Fabricação em lusco-fusco de uma forma sensível partilhada tanto pelo imaginário do cinema quanto pelos seres filmados. Mais do que simplesmente fazer uma imagem musical, o trabalho tem a ver também com conferir inteira corporeidade a um trajeto, com o modo de convocar o corpo para a inervação da imagem. Como se a questão tivesse também a ver com a formação de uma comunidade sensível entre as maneiras de aparição de quem é filmado e a própria implicação de quem filma. E nesse jogo de contágios infinitos, uma parcela de cidade pode vir a se configurar no encontro criador entre a aventura do cinema e a habitação do urbano.
6. De novo, a partilha. Mais do que convocar o trabalho de uma análise fílmica escrutinadora, Mixtape Dois Irmãos talvez nos solicite justo ressonâncias, que não cessem de traçar infinitos reenvios, como no movimento constante dessas bicicletas que seguem a dobrar esquinas logo ali.