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Frestas de uma sala de aula

História de uma pena, de Leonardo Mouramateus

Na composição geral de História de uma pena, esse novo filme de Leonardo Mouramateus, parece existir um grande presente entremeado por outros presentes que surgem sem uma hierarquia muito marcada, dentro da trama de acontecimentos arranjada pelo filme. Falo, mais especificamente, da condensação de ações que se vislumbra na sala de aula e nas interações entre o professor Eduardo, cujo nome só descobrimos ao final, e os alunos Sarah, Barbara, Wagner, Mairton, Wellington e Vanessa, que só aparece mais tarde. Esse intenso “agora”, se for possível dizer assim, é encenado de modo transversal à estrutura do filme, perfurado por outras forças que o excedem. De uma ponta a outra, somos convocados a percorrer mundos diferentes que traçam entre si um plano de coexistência sensível, reforçando uma ideia que me parece central a esse trabalho em especial, mas também às investigações de Leonardo de modo mais amplo: há sempre algo que faz a cena se contaminar por um fora. E nesse caso, é a sala de aula que tem sempre algo a ultrapassá-la. Esse algo poderia ser chamado, muito provisoriamente, de Vida. Questão fundamental: como fazer a vida atravessar a sala de aula? E talvez essa pergunta pudesse ainda ser modulada para uma outra: como pode a cena do cinema dar a ver uma experimentação de vida?

Essa ideia é bastante cara também à tentativa deste texto de explicitar um contato com o filme que passe tanto pela sua materialidade quanto pelo processo que o engendra. É como se analisar uma forma fílmica fosse também aqui uma questão de indagar a respeito das forças vitais que coabitam a tessitura da obra. Mais amplamente, valeria dizer que parece cada vez mais urgente assumir uma imersão, um gesto que tenta acompanhar a urdidura de uma matéria, na sua produção intimamente relacionada a um complexo de outras matérias, de esperas, de preparos, de tateios, de inscrições de luzes. É a Vida, de novo, que vem nos cobrar, como se dissesse que tanto a sala de aula encenada não é autossuficiente, como o próprio cinema não se basta: ele instaura um encontro de tal modo inaudito, que se transforma na matriz de um transporte, percorrendo, a um só tempo, o processo que o filme inventa para si, o filme que o processo faz surgir nesse jogo e ainda uma comunidade de espectadores a quem a obra se projeta, como endereçamento. Tudo é cinema, de um lugar a outro.

Tento reelaborar isso, um tanto mais concretamente: falar desse História de uma pena é para mim urgente como experimentação de um filme na sua matéria (agora ele começa a se espalhar), mas também como experiência de um trabalho no qual se engajam sujeitos variados, Leonardo, Victor, Clara, Rodrigo, Pedro, Filipe, Juliane, Adriele, Dayse, Fátima, Bio, Renan, Geane, Jesuíta, Diego, Clara, Caetano, Carlos Victor, Tomás, Samuel e tantos outros que efetivamente tomam esse acontecimento para imprimir parcelas de suas vidas. Evidentemente, reconhecer esse aspecto crucial dos processos de cinema é parte de toda uma rede de pensamentos que já colocam em crise, há muito tempo, separações entre fases cristalizadas de realização. Não existe aqui, então, nenhuma pretensão de originalidade nesse esforço de escritura. Trata-se muito mais de um lugar de partida para o pensamento, um modo de indicar uma implicação, com o corpo, nesse acontecimento fílmico, e de assumir que, no contato com essas pesquisas do Leonardo, já vem sendo pra mim de todo muito problemática qualquer perspectiva de cisão entre sujeito e objeto.

Assim voltemos, então, ao motivo inicial que era lançado, a de uma Vida que excede as formas da sala de aula e as formas do próprio filme. Um conjunto de acontecimentos não cessa de nos jogar para fora desse espaço circunscrito em que professores e alunos tecem relações. De um lado, os diálogos travados acentuam uma conversação de tensões em torno do próprio acordo em estar ali, dúvida posta a respeito da necessidade mesma de que aquele encontro aconteça. Wagner propõe ao professor um jeitinho para que todos possam ganhar a presença e sair dali mais cedo. As lógicas em conflito contaminam a cena por um litígio em torno do que cada um deseja do próprio tempo, de como matar esse tempo e fazer dele um outro uso, que não seja o programado pelos roteiros. De outro lado, várias frestas vão se abrindo aos eventos que emolduram esse grande presente da sala de aula, mostrando os personagens às voltas com suas vidas, desde a sequência inicial, um despertar de um casal sobre a relva, até o encontro dos amigos para fumar um baseado e rememorar um olhar vislumbrado numa festa.

Estamos, então, sempre perpassando uma aula que nunca começa, convocados para suas bordas, tomados pelo que nela se precipita, mas também pelo que dela se esvai. História de uma pena é, em alguma medida, um filme sobre uma infinidade de mundos que excedem a própria ação da cena, sobre as intensidades de um fora que perfura o quadro, sem se anunciar plenamente visível, mas ainda assim tensionando o campo visual e sonoro. Eduardo, o professor, quando vê um limite de conflito transposto, finalmente passa a perguntar a Wellington sobre que tipo de música ele gosta. É um dos primeiros momentos em que ele tenta traçar uma relação, mesmo depois de já ter sido interpelado sobre o que haveria na sua vida para além daquele instante, ao que então respondia de modo evasivo.

E se todo esse jogo cheio de tensões entre professor e alunos tem a palavra como eixo fundamental de construção, é importante considerar também o preciso trabalho de circulação dessa palavra, ressoando em vozes, a partir de corpos que se põem a habitar uma cena. Existe um elo fundamental entre gestos, sonoridades e rostos. E aqui, como dizia antes, filme e processo se vinculam intimamente, porque é o exercício de encontrar toadas, melodias, ritmos e escalas harmônicas para um coral que rende um interesse muito singular para a fabricação dessa cena que se vê e se escuta com o corpo todo. O experimento composicional articula, na montagem, rostos que passam a se responder, palavras que passam a se relacionar, vozes que passam a entrar em arranjo. E na produção mesma da cena, a repetição entra em operação para desencadear várias modalidades de aparição dos corpos falantes, alternando posições da câmera para que possam ser elaboradas variações em torno de um mesmo tema, de uma mesma fala que vai sendo modulada a cada vez.

Remodelado a cada enunciação, recombinado a cada dizer ou a cada olhar em silêncio, o encontro passa a ser capturado segundo diferentes perspectivas, porque há um interesse de base em perceber as singularidades daquilo que cada um pode operar enquanto tudo está acontecendo. É assim que, por princípio, a câmera deve acompanhar com atenção os gestos dos atores em seus devires, percebidos em duetos, solos ou em coros coletivos. E isso faz da matéria expressiva do filme um condensado de múltiplos tempos, possibilidade por excelência da ficção, que adentra a máquina-cinema com toda sua potência em fabricar um mundo imaginado. Paradoxal condição de uma trama ficcional que varre o espaço e tenta perceber cada rosto: ela faz surgir um tecido sensível ao mesmo tempo planejado com rigor, mas também captado na sua imprevisibilidade, justo pela intensa atenção ao detalhe daquilo que se encontra em vias de se elaborar.

Improviso e planejamento se entrelaçam assim, nesse processo que tem no ensaio um lugar fundamental para a criação de uma atmosfera. Nesses momentos prévios, a mise-en-scène busca um tom, a voz experimenta uma medida, e o coral vai se costurando, na tentativa de encontrar tempos, alturas, modos e ritmos. O esforço desse filme é se deixar povoar por vozes que progressivamente possam se tornar despossuídas de uma interioridade para construir algo como uma caixa de vibrações, um campo de intensidades em que tanto os rostos quanto as palavras entram num contínuo de derramamentos a criar uma escala comum, ao mesmo tempo desapropriada de partes identitárias e integrada por uma multiplicidade de diferenças.

Essa dramaturgia de proliferação, na qual já não existe linha vertical de dominância, também é experimentada em A Festa e os Cães, um filme de Leonardo que poderia ser considerado contíguo a esse História de uma pena, marcando um investimento que me parece bastante caro a esses dois processos que se deram bem próximos, o de descentralizar o eixo de enunciação para abrigar, na própria emergência da voz e da palavra, um regime de avizinhamento entre os seres que passam a contaminar a escritura. A Festa e os Cães e História de uma pena aproximam-se por desfazerem o centro enunciador e fazerem a palavra perambular na cena, despossuída de um só sujeito do qual o discurso iria se originar.

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Fazer esse texto é também dizer um pouco do que meu corpo aprende no gesto de experimentar esses filmes. E nesse caso, do que se aprende na experiência dos próprios acontecimentos que geram os filmes. A Vida que excede a obra tem a ver, em alguma medida, com aquilo que essa fabricação mesma reverbera para quem dela participa e com aquilo que a cena pode dar a ver de uma experimentação vital. Uma filmagem sob a luz do sol é também o momento de encontrar estratégias muito concretas de se abrigar e de fazer variar as parcelas luminosas a invadir o quadro. É o momento de filmar aquele despertar do casal sobre a relva, tudo em um só plano, que prioriza o contato dos corpos com a terra, o movimento das folhas no som e na imagem e um sutil deslocar da câmera pelo intenso brilho que passam a ter os corpos de Fátima e Bio. Fazer esse texto é traçar também um gesto de reminiscência por esse momento intenso da cabaninha que protegia a câmera dos raios de sol que vinham banhar os corpos e é tentar explicitar um pouco do que aprendi com esses filmes, em dizer de como eles me colocam em deslocamento pelo mundo e por uma infinidade de universos sensíveis, que estão a permear o devir constante entre processo e obra: a coreografia dos gestos, a música eletrônica, a dança das formas, o burilar da palavra.

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A aposta em fazer uma obra declaradamente de imaginação, de investimento na dramaturgia e na potência da fábula continua a guardar aqui uma relação forte com a cena vivida, mas me parece que essa relação já não diz tanto de um território – um bairro ou uma cidade, elementos que são tão importantes para muitos filmes de Leonardo. A Vida que extrapola a imagem talvez precise ser encontrada agora por outras vias. A matriz da expressividade dos corpos na cena talvez diga de um desejo em tomar os processos e as matérias do cinema para não falar mais de um sujeito individual, mas para despossuir experiências, contaminá-las por forças variadas, vindas do mundo, de vários seres e de um contágio transindividual e povoado, no gesto mesmo de disparar a máquina de criar imagens. A própria estrutura de fragmentação e de intervalo perfura o filme pela Vida. E o processo de criação mesmo também assinala uma travessia partilhada de invenção. As formas da ficção são aqui atravessadas pelo social de um outro modo, que não diz respeito a um laço mais imediato com um lugar estabelecido, mas com um trabalho mais desviante em forjar mundos desejados. A Vida que transborda História de uma pena, em alguma medida, é aquela que o próprio filme faz surgir, mas para fora dele, transbordando seus limites e fazendo variar relações dentro de uma sala de aula e dela com uma infinidade de outras ligações possíveis – detalhe de uma pena na sua potência conectiva, lampejo de uma festa.

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