Nada é, de Yuri Firmeza
Como se o tempo pudesse estar grávido de múltiplos tempos, como se uma cidade pudesse ser atravessada por uma infinidade de mundos heterogêneos, Nada é opera todo um trabalho de escavação de tempos futuros, toda uma travessia por ruínas, na cauda de um foguete. Esse estatuto paradoxal adquirido pelo filme talvez seja um dos aspectos fundamentais contidos nos variados jogos de interpolação que lhe são tão caros. A espaçonave abre uma fenda na Festa do Divino e deixa seus rastros acumularem-se junto aos vestígios das caminhadas pelas ruas. O trabalho arqueológico não tem aqui simplesmente relação com uma busca do passado, mas é muito mais voltado para a deflagração dos vetores e das forças que vêm e vão nessa geografia de tempos moventes. “Em Alcântara, nada é, tudo foi ou será”. A pesquisa de Yuri Firmeza é a, um só tempo, da ordem dos arquivos (dos rastros da experiência histórica), das genealogias e das cartografias.
Existiria um primeiro gesto do arqueólogo nessas superfícies de Alcântara, que se situa na própria captura das imagens desse mundo. Há um acentuado interesse em aproximar-se desse espaço, das suas texturas, das suas intensidades expressivas. Diante das ruínas, a câmera experimenta a densidade dos ambientes e passeia quase que a acentuar a própria presença em íntima contaminação pelo lugar. É também com uma cadência bastante tomada pelo que vem do mundo para o quadro, que se acompanham os rostos, as posturas, os cantos, as caminhadas de cada um dos seres filmados. A imagem tem, nesse primeiro gesto, um forte atrelamento ao que o mundo solicita. Mas existe, simultâneo e não sucessivo, um outro gesto, que coloca em relevo a modalidade mesma de intervenção do escavador. É como se o filme, convocado pelas matérias de tempo e de espaço de Alcântara, passasse a dar forma a mais tecidos para tramar, com a cidade, um corpo de sensações e de envolvimentos.
Ao mesmo tempo em que promove uma conexão extrema com aquela cena, Nada é não se furta a convocar o olhar para uma outra cena, a que a escritura mesma faz jorrar. Isso não implica dizer que se trata de um filme formalista ou voltado para si mesmo. É que, nesse caso, a forma se acentua para radicalizar o trabalho de modelagem dos tempos e para tornar manipuláveis – como se diz daquilo que se faz efetivamente com as mãos – as diferentes visibilidades dos sujeitos, dos corpos em movimento, dos objetos encontrados, e os variados desenhos de audibilidade desencadeados pelas palavras entoadas, pelas vibrações sonoras dos lugares vazios, pelos cânticos em festejo. Trata-se de um jogo entre as formas que o filme traz e as formas que do mundo vêm. Ao mesmo tempo em que se ostenta a própria articulação dos blocos sensíveis, é possível perceber nessas imagens uma aproximação muito sincera e visceral de cada parcela de mundo a passear pela tela. Existe uma atenção às expressividades desses espaços, dessas festas, dessas ruínas. E como que contígua a esse olhar atento, há a vontade de produzir um pensamento que nos faça apreender, numa só e mesma comunidade de mundos, o emaranhado de tempos aparentemente incomensuráveis.
Essa reunião dos heterogêneos mereceria ser observada naquilo que é potente em suscitar figuras singulares de cinema, em operações artísticas que mobilizam o pensamento dentro de alguns princípios do campo cinematográfico. Um dado contextual dessa obra é sua inicial motivação no âmbito das interseções com as artes visuais e com as instalações audiovisuais. Nada é esteve em exposição durante a última Bienal Internacional de São Paulo e se configurava para uma sala escura, projetada nos parâmetros de um trabalho instalativo do campo das galerias e dos museus. Se essa conjuntura ativa todo um agregado de experimentações, aqui a tentativa é situar um pouco as estratégias desse trabalho menos nesse lugar arquitetônico e mais na fruição da sua escritura cinematográfica. Condição também limiar, essa operação não é compartimentada em relação a outras artes ou modos de experiência estética, mas se torna também infiltrada por uma série de impurezas. Dizendo de outro modo, a opção aqui se concentra em investigar os modos pelos quais a máquina-cinema fabrica e modula uma infinidade de mundos e de tempos, já na sua potência visual e sonora.
Em um mundo de formas explodidas por um voo de foguete no meio de uma igreja, o espaço da cena se abre para já extrapolar o quadro em sua própria superfície de cinema. A montagem espacializa a cena e projeta as ações internas ao filme para um fora, ela faz o filme saltar da tela para ocupar o espaço dos corpos viventes. O que o quadro delimita, o campo estilhaçado explode. Se o cinema se empenha em circunscrever uma sucessão mais fechada de sequências, a densidade singular atingida aqui pelos sons, pelas sobreimpressões videográficas e pelos retratos em velocidades dissonantes acaba por reorientar a própria ideia de sucessão para um jogo de simultaneidade. Isso gera uma experiência em que já não estão em questão um antes e um depois, ou mesmo uma ordem de argumento primeiro a ser reconfigurado pelo acúmulo do que se verá no curso da projeção. Se existe alguma linearidade frasal, uma ordem mínima para a produção de sentido e de sensorialidade, ela não parece se dar como necessidade discursiva, senão como reunião rítmica e musical de blocos. É aqui que o trabalho de cinema se une a uma perspectiva genealógica.
É como se fosse possível encontrar uma forma expressiva, no campo da arte cinematográfica, para empreender o método genealógico de aproximação desses mundos múltiplos de Alcântara. Quebrando uma doutrina de progressão e de evolução, remodelando as ordens, desfazendo finalidades e origens, o genealogista capta as forças dos espaços numa ruptura metodológica com qualquer perspectiva de causalidade e de continuidade. A genealogia encontra, então, expressão em um pensamento por montagem, e os arranjos cinematográficos se dão como proliferação de agoras, todos eles abertos a múltiplas entradas. E então, ao modelo de cinema e de pensamento que estabelece os destinos e as dramaturgias das ordenações encadeadas, é possível objetar uma outra figura sensível, a da montagem-foguete que desmembra o tempo em vários pedaços e possibilita variações concertantes dessas associações, incessante trabalho de remontagem. Na mesa do montador, o filme faz da genealogia o seu método.
Dessa forma, nem o curso de uma procissão nem o de uma nave espacial são respeitados em um transporte direto para a espessura do filme. Nada é, além de uma experimentação de temporalidades, se configura também como uma invenção de trajetos. Ele constitui, então, toda uma cartografia, nunca estática, mas sempre em constante redirecionamento. Na deriva das matérias expressivas arranjadas pela montagem, o filme não cessa de colocar em movimento um desenho da paisagem. Aqueles corpos filmados ali são a própria cidade. São eles que nos conduzem pelas ruas e nos apresentam às bifurcações desses caminhos, na teatral visita de um imperador a uma vizinhança. Vistas em silhueta, várias pessoas tentam erguer um tronco de árvore, em mais um gesto que integra toda a cerimônia festiva. Observados na frontalidade do retrato, vários jovens se vestem ritualisticamente, posando segundo um princípio de encenação que se repete há anos e coloca em jogo tradições imperiais e religiosas. Esses rituais se operam como verdadeiros trabalhos de encenação, de estabelecimento de um palco – a própria cidade –, para uma celebração que sempre retorna à vida cotidiana dos que nesse mundo habitam. Existe uma forma de tempo inscrita nos próprios corpos que posam e que se teatralizam ritualisticamente, que cantam, tocam músicas e ocupam as ruas. A tarefa do cartógrafo está em captar essa cena urbana que se forja, fazendo incidir nesses rostos e nesses corpos, nesses palcos e nesses retratos, uma outra paisagem, de caráter estrelar, o lugar astronômico que tanto recobre também essa cidade.
Com um profundo interesse pelas práticas dos sujeitos no corpo social de uma localidade, Nada é parece encontrar grande força, sobretudo, na criação de zonas de defasagem. Se as formas expressivas do cinema são convocadas para todo um empenho em construir essa experiência de contato com a cidade, não se trata de aderência imediata entre filme e mundo. Os recursos da maquinação cinematográfica entram aqui de modo ostensivo porque, efetivamente, é preciso fabricar um lugar, um tempo, uma sensibilidade. As defasagens entre visível e audível, ou mesmo entre diferentes regimes de imagem e diferentes regimes de som, suscitam uma escala de discrepâncias e disjunções, que conferem a esse cinema um estatuto de constantes zonas de tensão. Estamos numa região em que se torna impossível qualquer aglutinação harmonizadora. Mas não se trata também de um simples jogo de contrários, tão caro ao campo da dialética. Na aposta em tornar comungáveis a espaçonave que decola e os gestos cerimoniais da Festa do Divino, o filme arrasta para um mesmo campo de pensamento modalidades diferentes de constituição de espaço e de tempo. Não se trata de oposição, mas de ambivalência na experiência mesma da diferença. E esses mundos heterogêneos permanecem com sua potência diferenciante, interferindo-se mutuamente e solicitados constantemente pela mesa de montagem, lugar por excelência desse filme de muitos entre-lugares.