top of page

Visitas com cinema

Visita ao filho, de Frederico Benevides

Da casa para a rua, o movimento do corpo projeta um homem rumo a uma deriva. O desnorteio de Manoel faz dele um errante a céu aberto, que experimenta o espaço com outras coordenadas sensíveis e uma possibilidade de acaso capaz de potencializar encontros. Da rua para a casa, são os gestos cotidianos que já não encontram a mesma resposta do corpo: a relação entre mundo e corpo se deslocou de qualquer funcionalidade. A mente, que agora opera de outro modo em virtude de uma idade avançada, transforma o fazer em uma pura ação sem fim. O estado de consciência de Manoel é disparador de um outro modo de coordenar o corpo, muito mais desautomatizado, desfuncionalizado e desorganizado. Em outros fluxos, ele tenta acertar com uma raquete algum inseto no ar, enquanto a transmissão radiofônica fala das mudanças sociais na cidade de Fortaleza. Manoel tem outro ritmo, outra velocidade, outro tempo, sempre em descompasso com o entorno. É por isso que já não faz sentido responder racionalmente à necessidade de colocar água no recipiente que vai ser usado para regar as plantas. É por isso que o corpo deseja muito mais o contato com outro corpo, o acalentar do carinho e da pele, em meio à madrugada, do que o cumprimento marcado da rotina e da mecânica do fazer. Ao tomar esse personagem como intercessor das relações entre filme e mundo, Visita ao filho, de Frederico Benevides, desencadeia visitação singular de uma cidade. A visita torna-se movimento e trânsito, percurso pelas ruas e encontro com homens e mulheres que passam a fazer parte do acontecimento do filme. Na tessitura entre corpo errante e espaço urbano, é o filme mesmo que faz visita, que transita e faz passagens.

Isso tem já uma dimensão física e material. Fazer o filme visitar o espaço é constituir dramaturgia, quadro e montagem que desenhem um mapa de possíveis, uma cartografia de percursos, uma trama entre imagem, cena e rua. Toda uma poética fílmica que precisa ser investigada para desencadear o movimento. É toda a pesquisa de um campo visual e sonoro para experimentar o gesto do filme e do corpo no atravessamento dos espaços. Indissociável dessa concretude da visita fílmica, haveria ainda uma segunda dimensão do encontro no trabalho desse filme, que se articula a partir do contato com a literatura de Moreira Campos, gesto já experimentado por Frederico em As corujas (2009). A visita ao filho é o conto do autor que serve, dessa vez, de mote central para fazer imagem e som. É um encontro do cinema com a literatura, mas aqui esse contágio se bifurca. Porque, no rigor dos enquadramentos, no exercício dos retratos que emergem, na modulação das intensidades do som e na plasticidade dos planos fixos, podemos ver transitar uma maior quantidade de formas expressivas, contaminadas ainda por outras artes: a pintura, a fotografia, a dança, a música. O desafio é condensar e reunir na singularidade do quadro cinematográfico a constelação do universo literário. É fazer da forma-texto uma forma-imagem. Transcriação, essa palavra que vem com recorrência no campo dos estudos que pensam essas passagens entre formas expressivas, pode ser um bom nome para dizer desses processos em que o visível não é determinado pelo dizível, mas torna-se uma vizinhança de pensamentos. Campo aberto para o pensável.

Então, seriam pelo menos algumas visitas que se colocam em jogo aqui: a visita ao filho, no campo da busca narrativa realizada pelo personagem Manoel, se torna contígua aos trânsitos entre filme e espaço e entre cinema e literatura. Tripla visita, poderíamos dizer. E esse jogo vai se adensando conforme a câmera, junto ao personagem, se deixa tomar pelos acidentes do mundo. Com os planos abertos e mais distanciados, estamos quase que no desenrolar de um dispositivo documental a observar as interpelações que Manoel faz das pessoas na rua, perdido, sem saber onde fica a casa do filho. Ao mesmo tempo em que existe uma expectativa e uma aposta naquilo que pode se desenrolar diante da máquina-cinema, trata-se também de desencadear uma intervenção cênica para operar (n)o real. É uma maneira de a ficção perfurar a rua, quando lá nas conversas que o ator tenta estabelecer com os homens e mulheres do bairro, acontece todo um microcosmo do filme. Na unidade dramática desses contatos, a cena se traça em um duplo jogo de povoamento pelos seres encontrados e de trabalho dramatúrgico vindo da escritura fílmica.

Até que somos tragados pelos corpos da multidão em festa, numa das sequências mais potentes do filme, quando Manoel encontra o carnaval, a dança livre de quem pula e festeja sem coreografia planejada, numa improvisação que também vem da rua, da relação com o traçado urbano, do contato com o corpo do outro. Na mesma lógica do plano fixo, aqui é como se o realizador esperasse também que a força desses corpos em festa venha tomar o corpo-filme, seguindo do fundo para o primeiro plano, varrendo o espaço com o movimento, até chegar bem próximo ao aparelho que faz aquelas imagens e ocupar todo o quadro com gestos em profusão. Se os irmãos Lumière filmavam a saída dos operários da fábrica, guardando o direcionamento para os lados, aqui esse deslocamento comunal é frontal e vem ocupar a imagem com variações, cores e energias intensivas. Essa é a capacidade que o momento da festa alcança em sintetizar num só plano toda uma explosão de fagulhas sensíveis que vão se somando aos poucos.

E esse ponto de intensidade parece dizer de todo um empenho em reduzir os recursos expressivos a elementos mínimos, em guardar os gestos, em ponderar nas movimentações de câmera, em filmar com reserva, mas também com desejo. Poderíamos chamar, provisoriamente, todo esse trabalho do filme de uma potência de síntese, que se acentua tanto mais quando somos colocados diante dos retratos compostos para marcar encontros com outros contos de Moreira Campos. Eis que de repente a escritura imagética é atravessada por quadros que elaboram figuras singulares para fundar visualidades possíveis a partir das palavras do escritor. Estamos diante de A gota delirante, As corujas, Dizem que os cães veem coisas e outros tantos textos que são aqui convocados e transformados em uma só imagem, trabalhada como uma pintura ou uma fotografia de movimentos mínimos (seria fundamental escrever todo um outro texto a respeito da instalação que Frederico realizou na Casa do Barão de Camocim, em Fortaleza, espacializando a experiência num díptico que trazia esses mesmos retratos em desaceleração dos gestos, micromovimentos postos em efeitos de defasagem ainda maior).

A moldura recorta e concentra a densidade literária em uma posição de corpos, transcriação para uma pose, uma maneira de estar diante da câmera e de olhar com a câmera. Força da síntese, redução aos elementos mínimos. O quadro cinematográfico torna-se o átomo básico capaz de conter um mundo: e nisso, seria possível remontar também a todo o trabalho materialista e minimal de um conjunto de filmes dos Straub que também transportam os fluxos das palavras para a enunciação cinematográfica.

De alguma maneira, Visita ao filho vai nos levando de um pensamento sobre a visita para toda uma reflexão sobre as velocidades do mundo e dos corpos. Fazer a visitação pela cidade é perambular perdido e descobrir outros universos dentro de um só. É perceber que cada um tem sua urgência, seu desejo, mesmo na formação da multidão festiva. Porque lá também, Manoel pode ser visto em outra temporalidade, deslocado do ritmo da coreografia em processo. Visita ao filho faz da travessia do seu personagem uma oportunidade para se deixar carregar por uma heterogeneidade de forças expressivas e por toda a potencialidade dos encontros, que podem resultar mesmo no gesto simples de oferecer um copo d’água.

bottom of page