Para Leonardo Mouramateus, sobre A Festa e os Cães
Deu filme, Leo. Deu filme apesar de tantas coisas que insistem em interpor-se à existência do cinema. Quando você me contou que estava fotografando os cães, as festas, as ruas, a gente pensou em expor o material bruto desse filme de fotografias que você queria fazer e apostar também que tudo nesse trabalho é também um gesto, uma experiência, um processo. Isso foi lá no começo do ano, a exposição foi em maio, e a câmera analógica que você estava usando quebrou justo nessa época também. Mas o filme vinha se formando – e o acaso, o acidente, as imponderabilidades dos caminhos, eram questões extremamente importantes para tudo o que forçava esse filme para o limite entre o existir e o não existir. Vem a escolha por fotografar porque era meio difícil filmar numa cidade que pode ser extremamente agressiva para quem insiste em ocupar o espaço público.
E mesmo diante disso, fazer cinema, porque o gesto de fotografar diz acima de tudo de uma necessidade vital em fazer uma imagem, em fazer-se, com o outro, na imagem. E apesar de tudo, fazer uma dramaturgia, uma cena, uma dinâmica de experimentação, em que o filme e a cidade se dobram um no outro, e mais do que tudo, a experiência de quem filma/fotografa deixa de ser de um só, para ser compartilhada por muitos. É a câmera que circula na festa por várias mãos, são as vozes que proliferam, meio que fantasmaticamente, rondando essas imagens, olhando para elas, interrogando-as.
Uma dramaturgia que se cria pela entrada e saída de fotos no quadro. O gesto de fazer um filme apesar das condições que restringem possíveis. Esse filme é, no fundo, muito sobre isso, sobre a insistência em filmar, ainda que com fotografias. Tem uma melancolia, um sentimento de partida e de despedida, mas isso se passa como força fílmica. Uma maneira melódica de conduzir as imagens, de inserir motivos melódicos. O gesto de explicar uma música para teu primo Júnior é dos mais delicados (ouve isso, vê isso, sente isso – desejo de partilha, de criar, no entre, algo que passa a ser comum aos dois que estão ali escutando o som). Deixar uma música para teu primo é um gesto. Deixar fotos para teus amigos é um gesto. Deixar um filme para a cidade também. Um filme feito para a cidade. Feito com e para os amigos: cada diálogo pensado na Geane, na Clara e no Kevin. E também no Júnior, no Bardal, nos cães. As pessoas, as festas, os cães, a cidade.
Decisão fundamental aqui: esse filme que surgiu, esse filme que tu chamou de A festa e os Cães, é efetivamente uma multiplicação de vozes, uma aposta de que não bastava você falar e enunciar o tempo todo. É como se aquilo que Mauro em Caiena te respondia e te indicava como caminho – você falando e se dirigindo ao tio na Guiana Francesa – se ramificasse para uma outra maneira de fazer e de dizer. Necessidade vital de novo, algo que cada filme parece pedir e despertar. A inquietação aqui se dirige a trazer a palavra enunciada pelo Leo, mas ainda em constituir conversação, com a Geane, a Clara, o Kevin e o Júnior – caramba, ele arrasa! Talvez você esteja, cada vez mais, tornando a experiência fílmica um lugar para estar junto com outros, um mundo para partilhar com muitos – um coral, como é também História de uma pena. Por que não é disso que se trata também fazer um filme? Possibilidade de uma polifonia? Não é senão pensar como uma voz reverbera na outra, como um som se contamina pelo outro? E voz é corpo, o coral é composição de arranjos rítmicos, de variações, de intensidades. Se é voz sobre voz, é também corpo sobre corpo.
E uma vizinhança também tem toda uma multidão de sons. Ela se constitui e se modula no tempo, pelo que a gente consegue ouvir nesse entorno. Estando ali como vocês na filmagem, era possível perceber o Pedrinho experimentando cada reverberação do fora no dentro, cada ruído, cada som de construção, cada som de pássaros. Uma tessitura sonora. Uma maneira de compor as vozes com todo o mundo de sons que permeiam esse entorno de uma casa. Experiência sonora, experiência de mundo. O entorno em transformação vem entrar no filme, na casa, no quarto.
Filme de fotos e de despedidas. Essas fotos, que são elas? Como um corpo (uma voz) se coloca diante delas? O que desejam essas imagens e o que elas fazem de quem as olha? Há sempre o desafio de não cair no fetiche pela forma ou pela textura simplesmente. O importante é que essa matéria se faça experiência e gesto, que ela esteja se torcendo a partir do que se vive, que ela afete uma comunidade de espectadores, que ela afete, de cara, teus amigos mesmos que estão ali, tocando no vivido, no experimentado – e também no vivível, no experienciável. Sair da pura textura é criar possibilidades de relação entre as fotografias, uma coreografia das imagens. Montagem de várias camadas: já existe uma escolha daquelas que serão impressas e filmadas, e depois é preciso fazer uma montagem dessas sequências em que as imagens dançam diante da câmera. Existem várias maneiras de aparição dessas imagens, ora elas vão entrando, ora elas estão saindo. E em alguns momentos, há quase uma brincadeira no modo de destacar algo que surge ali ou de inverter uma das fotografias que entrou de cabeça para baixo – enquadrar e reenquadrar?
Nem formalismo nem pura textura, mas gesto. É daí que surge aquela dramaturgia, mas ela é aqui muito singular, porque ela nos leva como que por uma espiral. A câmera fotográfica também guardou algo da cena de corpos em movimento – cães, pessoas. E outra câmera vai depois filmar as fotografias, vai formular cenas em que essas mesmas imagens se tornam outros corpos colocados em relação. Olhar, aprender a ver, quase analisar em alguns momentos. Uma das fotos é toda decupada nos seus vários elementos, enquanto a Clara fala com o Kevin.
É um filme que conecta um dentro e um fora: as fotos foram feitas nas ruas e nas festas, e vocês falam delas no teu quarto. Filme caseiro, como você mesmo já tinha dito. Mas é um filme que se passa na casa para também falar da experiência de desabrigado, que é a experiência dos próprios cães, que é a experiência de ir a uma festa também e voltar meio perdido, meio desorientado. Ou de estar lá dançando também aberto ao risco de uma troca de olhares, de um encontro, de um destempero. Esse dentro e esse fora se tocam nessas vozes que falam das imagens que vemos diante da câmera. É um filme que coloca imagem sobre imagem. Uma imagem que se faz ao se sobrepor a outra. A abordagem de Jean Eustache, em Les Photos d’Alix, reverbera aqui, mas para tomar também um rumo singular, uma maneira muito pulsante de olhar para uma fotografia. Não é o gesto cinéfilo, da citação, da pura referência. É gesto que gera gesto. E agora é fazer do próprio quarto a mesa de montagem.
E você vai agora para Portugal, como ia o seu tio Mauro para Caiena. Como gesto de despedida, você poderia fazer uma festa. E fez. Resolveu fazer uma festa, para a qual acabei não conseguindo ir, e um filme, no qual estive. Tive a alegria de experimentar esse processo em suas várias travessias e camadas. E eu fico pensando nisso, Leo, no que faz surgir o desejo de fazer cinema. No que faz cada filme singular surgir, apesar de tudo o que pode limitar o surgimento dele. Esse gesto tem de ser um movimento de corpo, de vontade, de tesão, de respiração. Um pouco como aquela pancada que é a cena de sexo logo do início de O completo estranho ou como é também o olhar de uma pessoa que dança e nos encara, tanto nesse filme quanto em Mauro– quanto numa festa.
“Estive” no filme, eu dizia. É que um filme é um lugar, um espaço que habitamos por um tempo. Um espaço comum possível para viver. Então, talvez seja isso mesmo, estive no filme. Não digo aqui da sala de cinema, mas do filme mesmo. Mais do que um objeto ou um produto, ele é um acontecimento, ele ganha corpo e se formaliza enquanto corpo. É bloco de espaço e de tempo. Estar no set do teu filme caseiro é estar na tua casa, no teu quarto, na rua Itália, na Maraponga, ouvindo todos os sons do entorno, aguardando um carro passar, para que o ruído diminua, almoçando da comida tão boa que a tua mãe faz, se perdendo um pouco com o Pedrinho no caminho – e eu brincava com ele que a gente bem poderia ter levado um frame do Europa, justo daquele momento em que surge o mapa desenhado com algumas ruas da Maraponga. Espaço e tempo de afetos.
Esse filme é feito de várias costuras, de movimento. Não para de fazer bifurcações. Processo não é conjunto de etapas para formar produto. Processo é pôr-se em movimento, é abertura a experimentar alguma coisa que não existiria se uma aposta não fosse feita, se um risco não fosse abraçado – mesmo que (e justo por isso mesmo) não se saiba do que se trata o porvir. Festas, cães e um filme de várias camadas, que põem em jogo formas de visível, de dizível e de audível. Tudo isso processa transformação em quem se envolve.
Deu filme. E deu viagem também: teus documentos chegaram na hora certa, e você viajou no dia certo. Agora você já deve estar em Portugal, onde não tem tantos cães, mas tem muita merda de cão. Você reencontra amigos, você segue com a necessidade vital de fazer cinema. Manda filmes daí, Leo.