Concretude e amor trágico
A História da Eternidade, de Camilo Cavalcante
O sertão de A História da Eternidade é precário e sombrio. As paredes das casas apresentam rachaduras. A pele dos personagens tem marcas. De noite, há pouca luz ou casebres com lamparinas. Seria fácil apontar a construção do espaço como sertão barroco – e não é de todo absurdo já que é notável a referência às pinturas de Caravaggio como inspiração buscada pelo diretor de fotografia Beto Martins. No entanto, para além do notável apuro técnico que perpassa a feitura das imagens, há uma vontade de invenção de um sertão por sua concretude, sem precisar recorrer a uma maquiagem fetichista que retrataria o lugar pelo estereótipo e pelo excesso de luz.
O concreto está já anunciado na apresentação dos capítulos de A História da Eternidade: “Pé de galinha”, “Pé de bode”, “Pé de urubu”. Não parecem ser mais que animais pendurados em árvores. São imagens de superfície que compõem a atmosfera do filme e, ao mesmo tempo, não estão ali para simplesmente simbolizar os acontecimentos que virão. Somos tomados sensorialmente pelo que aparece diante dos nossos olhos. Como as fotografias do mar penduradas na parede do quarto de Alfonsina, que aparecem e desaparecem ao clique do interruptor de luz.
Como complemento ao concreto, há uma potência arquetípica nos personagens e nas três histórias de amor que atravessam o filme. Alfonsina é a jovem que sonha ver o mar e se encanta com o imaginário do tio Joãzinho, um artista epilético disposto a enfrentar a brutalidade do irmão. Querência é recém-viúva e, quando ainda sofre a dor da perda do marido, deixa-se apaixonar por um sanfoneiro cego. Das Dores tem o desejo despertado com a chegada do neto que morava em São Paulo.
Ao intercalar as tramas, o filme respeita o tempo dos personagens e dos lugares em que transitam. O rigor de encenação é presente em cada plano e o tom varia de acordo com a dramaturgia dos personagens. Na história de Alfonsina e Joãzinho, a atmosfera operística estrutura as cenas. Dois travellings circulares giram a 360º. Quando Joãozinho – pela força performática de Irandhir Santos – interpreta Fala, do Secos & Molhados, é como se o mundo girasse em torno de um corpo a provocar uma fenda na calmaria do vilarejo. Quando Alfonsina é levada a imaginar o mar, embarcamos com ela neste giro que desemboca na imagem das ondas do mar – presente generoso do diretor não só à personagem, mas ao espectador.
Com a mistura inusitada entre o ritmo regional de Dominguinhos e a sofisticação instrumental do polonês Zbigniew Preisner – compositor das trilhas dos filmes de Krzysztof Kieslowski –, o tom musical predomina na história de Querência. É o entretrecho dramático com fragilidades, tanto pelo excesso de uso da trilha a sublinhar os sentimentos dos personagens, quanto pela caracterização pouco expressiva do sanfoneiro que ganha o mesmo nome de Cego Aderaldo, figura popular tão cara ao imaginário do interior cearense.
A estranheza da relação entre Das Dores e seu neto jamais chega a um cinismo perverso e incestuoso. Camilo Cavalcante não tem o mesmo olhar de Claudio Assis. A violência em A História da Eternidade não é escancarada e farsesca. Ela é fruto de uma moral própria do sertão e Camilo olha com ternura para os desfechos trágicos que advém dos amores impossíveis e quase improváveis entre os personagens. Poderia muito bem se encaminhar para uma resolução paternalista, mas o filme não cai nesta armadilha. Pelo contrário, as figuras femininas se sobressaem. Com elas, a vida segue, apesar da dor e da perda.
* Filme visto no 6° Paulínia Film Festival, em São Paulo.