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Diante do irreparável

Avanti Popolo, de Michael Wahrmann

É em meio a ruínas que Avanti Popolo se constrói, buscando os rastros de uma memória, investigando os vestígios do próprio cinema no curso dos tempos. Nesse contato muito próximo com aquilo que resta e sobrevive na experiência histórica, há uma tensão irresolvível. Voltar-se para o passado, na melancolia do presente, com a paradoxal afirmação de um avançar. Duas figuras são evocadas, o futuro e o povo, numa obra em que essas mesmas figuras se efetivam justo como vestígios, na irremediável condição de ausência e presença. Um popolo atravessa os muros, filmados bem de perto, na espessura marcada pelos gestos que intervêm no espaço. Uma genêse de um tempo vindouro parece ser operada na atmosfera de um mundo que está simplesmente assim, como se o porvir tomasse lugar na relação com algo de irreparável.

Nos escombros do passado, o que fazer? Existe uma constante alternância entre o interior da casa e o espaço externo, que revela um pequeno pedaço da rua e do entorno. Existe todo um trabalho de montagem que faz as imagens de Super-8, das memórias de anos anteriores, penetrarem as cenas do presente, muitas vezes narradas por André, o filho que volta a morar com o pai por uns dias. Ele tem um esforço de ler essas imagens, de conhecer o que elas podem revelar ou o que podem esconder, de descobrir nos vestígios que elas suportam as possibilidades de um encontro no presente. Essa busca se dirige sempre mais a uma tentativa de mostrar ao pai, o Sr. Gatti, algum sinal que permita restabelecer o laço com o outro filho, nunca mais visto desde os anos 1970, quando viajou para a então União Soviética. São duas histórias que vão se entrelaçando constantemente, uma história dessas imagens, história material mesmo, que diz da concretude dessa matéria fílmica, e uma história de famílias, história de relações e de rupturas, de distâncias, de silêncios, de esperas.

Convocando essas experiências visuais, o filme também carrega para dentro da sua escritura os traços de memórias pessoais, que já são também coletivas, como que grávidas de uma comunidade. Retomando esses tempos inscrustados no visível, o que se restitui no presente é também a própria possibilidade de recriar o passado e de atribuir às imagens uma outra pulsação, um outro regime temporal e de historicidade. É também todo um trabalho de fazer aparecerem gestos não contados.

Nas pontes entre dentro e fora, privado e político, casa e mundo, é o cinema que se torna operador dos trânsitos, é o cinema que toma lugar mesmo de uma máquina de memória, máquina do tempo. O cinema e seu mecanismo, é isso que passa também a surgir como uma camada do filme. A sala da casa vira sala de cinema, o percurso do carro pelas ruas no início é já uma criação de formas cinematográficas, uma pesquisa de todo um território sensível. Os ruídos do automóvel, os pequenos barulhos dos faróis que acendem e apagam, e essa luz mesma que vem criar uma maneira de ver o espaço recortado, tudo parece apontar para a própria fabricação em curso, como se a máquina-carro e a máquina-cinema se confundissem por alguns momentos. E é isso a justa medida de imbricação que faz do filme uma proliferação de referências aos gestos de projetar, de filmar, de montar, de ver. Gesto de brincar com a cachorra Baleia, outro rastro de uma história do próprio cinema, ela que some, mas depois retorna, após um longo período de inquietação do Sr. Gatti, no lamento de mais um ser que desaparece e parece não voltar.

Na tentativa de encontrar uma outra relação com a memória da ditadura, o que se passa a operar é o constante retorno de todos esses rastros que as máquinas do cinema, da memória e da experiência do vivido não cessam de pôr em movimento. Tudo o que parece acontecer em cada plano é muito mínimo, é uma intensidade decantada pela tessitura dos vestígios que se acumulam em gestos bem pequenos e repetitivos. São os gestos do próprio filme que não parem de ir e vir, de insistir numa composição, num modo de recortar e de desenhar o quadro. Uma fresta de luz começa a ocupar a sala que parece um compartimento bastante impenetrável: é como se uma outra sala, a de cinema, fosse também tomada, por um instante, pelas energias que vêm de um fora, para elaborar com o dentro as formas não pensadas do pensável, as sensibilidades ainda não capturadas do sensível, as visibilidades por vir do visível. E a projeção que passa a também emitir luz nas paredes, em outro momento, vai trazer a imagem do filho, que se imprime também no próprio corpo dos dois homens que sentam no sofá. O Sr. Gatti, que já não consegue ver, vai tocar com o rosto essa onda de luz que vem e que desenha traços na pele, na parede, na casa.

Se o avanti apontaria para o futuro, o movimento das imagens tenta ler a história que o tempo deixa nas ruínas do mundo. Um advento surge, então, paradoxalmente como retorno, como encontro com as reminiscências e com as repetições. Não existe um para a frente na melancolia de se colocar diante dos rastros. Não existe um adiante como transcendência da concretude das vidas e dos gestos, senão uma imanência de imagens e de sensações numa sala, numa rua, numa parede, num jogo com uma bola e com a Baleia. É que já não cabe pensar um além, uma superação da história, uma caminhada rumo a um futuro em que as tensões se resolveriam. Não se trata de uma progressão de eventos sucessivos, mas de recombinações, refundações, para daí fazer crescer outras coisas, mas sempre pelo meio, mais do que por qualquer extremidade. Por isso o avanti não pode mais implicar evolução, progresso ou mesmo revolução. O que insiste aqui é, sobretudo, a travessia do filme pela memória, em constante produção de novas marcas, em infindável liberação de agoras, em incansável repetição de um movimento que precisa desencadear pequenas perturbações no que se apresenta como irreparável. Expondo o próprio cinema no seu mecanismo, na sua memória e na sua maquinação, o filme também expõe um popolo, mas como fulguração de fantasmas e de ruínas. E existe sempre uma imagem ainda por ser criada, no vazio que se abre quando a locução radiofônica entoa a canção, na voz do próprio radialista, que precisa cantar porque o disco parece estar arranhado.

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