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Cinco propostas para outros cinemas ou Fragmentos sobre a sessão #8 do Cine Caolho

Sessão com os filmes: Mutação (2014, Viviane Rocha, Irene Bandeira e Rafaela Kalaffa), Pra você (2013, Isabela Bosi), O centro invisível (2014, Tiago Pedro), Balneário (2014, Marina de Botas) e Perdeu a memória e matou o cinema (2013, Solon Ribeiro) Mutação

Articular o rigor na construção imagética e sonora com a delicadeza da atenção às nuances na possibilidade de criar outra cidade a ser habitada. Uma urbe feita de fluxos e modulações, que se deixa afetar pela ação performática dos corpos que a atravessam. Um filme que não apenas observa, mas propõe gestos diretos como forma fundamental à criação de seu universo interno.

Pra você

Se colocar entre fotografia e cinema ao estabelecer uma disjunção que quebra o fluxo narrativo causal da imagem em movimento enquanto oferece o tempo reflexivo fotográfico. Com isso, continuar o gesto da intervenção urbana de espalhar cartas por Fortaleza ao dar abertura a quem encontra esse vídeo afetivo. A obra segue oferecendo algo à cidade e dando espaço para que esta também habite a artista e aqueles que se dispõem ao mesmo.

O centro invisível

Expandir a figura e encontrar a superfície. Imagem como papel sobre a qual se inscrevem grãos, pixels, letras, cor. Assumir o grafismo da palavra como imagem e a imagem como palavra, com os quais se constroem uma cidade e uma memória.

As cicatrizes não são a memória arquitetônica na cidade como lembrança do passado, mas o que se inscreve sobre ela - as novas construções, os cartazes, a ferrugem, as palavras do poeta, as camadas e sobreposições do filme em mútua contaminação.

Balneário

Privilegiar a duração do primeiro plano no seguimento das ações é elevar a intensidade da performance no vídeo ao máximo. A repetição incessante do instrumental de Insensatez, de Tom Jobim, também ressalta a elipse dos gestos na relação, como camadas que se somam até chegar ao ápice no segundo e último plano, mais curto e em leve plongée, a observar o que restou do processo – todas as sobras que resultam da construção de uma situação artificial de mútuo controle.

Perdeu a memória e matou o cinema

Dar ensejo ao encontro das superfícies da cidade e da imagem se misturando em interferência recíproca e adensadas pela pele fônica da personagem e dos ecos de sua memória. Liberar o projecionista e os fotogramas ao se voltar em diferença para o cinema em perene reflexividade. Retornar as imagens do cinema clássico ao seu lugar inicial, mas estilhaçadas em frames e em narrativa lacunar que incita a fabulação.

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Não é uma questão para esses filmes se posicionar como documentário ou ficção, apesar de todos transitarem nesse limite. Mutação observa a cidade, mas propõe intervenções performáticas que a afetam em contrapartida. Pra você oferece a situação fílmica de uma intervenção urbana que parte da relação da diretora com Fortaleza. O centro invisível tece dupla afecção entre o realizador e a cidade. Esta move sua escrita, enquanto ele escreve sobre sua superfície e a emoldura na performance de Floriza Rios. Em Balneário, o vínculo factual entre mãe e filha passa pela proposição de uma situação, engendrando um dispositivo performático para pôr em xeque questões da maternidade. Já Perdeu a memória e matou o cinema parte de uma narrativa articulada pelo artista a partir de sua coleção de fotogramas e de instalações anteriores, mas projeta as imagens sobre a cidade de Fortaleza e imbrica a personagem principal à figura do realizador.

Ao fim, ainda é necessário rotulá-los ao expô-los em festivais, museus ou nas fichas técnicas da folha crítica do Cine Caolho. Mesmo assim, eles ainda escapam. Essas obras híbridas podem transitar entre espaços diferentes por proporem uma experiência outra, uma passagem entre linguagens, e comportarem um tempo diferente daquele de causa e efeito.

Ao conterem uma relação direta com a performance – linguagem-fluxo que não se deixa aprisionar em definições cerradas – esses filmes não podem ser compartimentados em seguimentos da arte. Os chamamos de filmes por serem audiovisuais, mas esses são filmes outros. São investigações de projetos poéticos que se baseiam sobre a transversalidade das imagens, transformando-as em experiência. Ao tomarem essa posição, os artistas expõem suas questões e colocam suas descobertas como a articulação de novos idiomas, dos quais os efeitos não podem ser antecipados. Esse gesto inclui o espectador como outro desbravador ativo na construção de sentidos e na concretização de sensações.

É possível estabelecer pontes entre essas obras e certos movimentos de intersecção entre cinema e arte. No caso de Balneário e Perdeu a memória e matou o cinema, lembremos que ambos estavam instalados no Museu de Arte Contemporânea do Dragão do Mar ainda nesse ano e possuíam configuração espacial articulada dentro das salas que habitavam. Pra você e O centro invisível dialogam com filmes-carta e obras que trabalham relações entre imagem e palavra (seja esta gráfica ou sonora). Mutação se relaciona com vídeos de performances e filmes de sinfonia das metrópoles. E não só por isso, mas também pela proposição de dispositivos geradores e de imagens-sons sensoriais, está próximo também de Sábado à noite, de Ivo Lopes. Esses cinco trabalhos podem muito bem ocupar uma sala de cinema ou uma galeria. No entanto, a interação com os espaços diferentes implica certas adaptações e interfere diretamente na fruição.

Balneário e Perdeu a memória e matou o cinema são os dois exemplos mais claros dessa colocação por já terem passado por ambos os espaços. No MAC, o primeiro possuía um conjunto de árvores cenográficas ao redor do monitor de vídeo, estendendo a questão para o espectador de maneira física, já que ele deveria adentrar o balneário artificial do museu para ter acesso àquele que mãe e filha criaram para si. Projetado em maior tamanho na sala escura, Balneário potencializa a relação de duração com o espectador, que se deixa levar pelo seguimento da relação que se tece em plano fixo. Perdeu a memória... se propunha espacializado como sala de cinema no museu, o que a evidenciava como um dispositivo de visualização de imagem construído historicamente. Estando na sala de cinema de fato, o filme potencializa a voz e o deambular da personagem Sage, que fala de si como desse lugar. Agora, um espelho se coloca na sala. Esta como sítio, quer queira quer não, impregnado de memórias de mais de cem anos de história de uma linguagem hegemônica que se vê voltada para si mesma em quebra reflexiva e de constante auto-questionamento.

Quanto aos outros três trabalhos, resta a pergunta de como seus realizadores o instalariam e qual seria sua relação com o público do espaço expositivo, posto que são experiências. Fica o desejo de encontrá-los em breve.

Se a hibridação já existia antes de Griffith e se faz como um caminho sem volta pelos meios digitais, para que ainda pontuá-la ao observar seus movimentos e efeitos? Porque cada ação nesse sentido guarda a concretude de uma possibilidade dentre inúmeras outras a gerar uma linguagem que não se aprisiona em si, que é mutável e constantemente interessada em se fazer cada vez mais fluxo do que definir sua individualidade.

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