Praia do Futuro, de Karim Aïnouz
É interessante chegar a esse novo trabalho de Karim Aïnouz e considerar os caminhos que ele atravessa como realizador, a pesquisa que ele faz com seu cinema. Ao mesmo tempo em que podem ser vislumbradas questões que se tocam entre Praia do Futuro e outras obras como O céu de Suely e Madame Satã, os percursos parecem trazer novas dinâmicas ao trabalho das imagens, tanto naquilo que elas compõem como formas expressivas quanto naquilo que os modos de produção e circulação parecem reverberar na constituição da matéria do filme. Talvez aqui seja preciso, pela singularidade do movimento que esse trabalho faz no próprio cenário do cinema brasileiro recente, considerar alguns intercâmbios entre elementos da própria escritura em imagens e sons e fatores que podem, pelo menos num primeiro nível, não dizer diretamente do que se constitui como obra, mas que parecem fundamentais como horizonte de conversação também.
Uma entrada que já poderia ser tentada passa pela maneira como a dramaturgia faz vibrar de forma tão intensa os corpos na cena. Donato se faz presente nos planos, sobretudo, por um jeito singular de dançar, por um modo visceral de chocar o corpo com o de Konrad ou com o do irmão Ayrton, quando se reencontram. Existe também uma maneira de trabalhar como salva-vidas em sincronia com os corpos dos colegas, como na sequência em que todos se exercitam na praia. Mas logo a singularidade vai ser destacada quando o grupo mergulha no mar, e a velocidade de Donato é outra, tateante, em dúvida. Talvez esse movimento dos corpos seja um princípio condutor fundamental do filme, que faz atravessar cidades, nesse trajeto de Fortaleza a Berlim, tão central aqui. É muito nos gestos que podem se encontrar algumas das sensações em jogo. É na tentativa de inventar uma cena desses gestos que uma maneira de fazer cinema vai se desenhando. Alguns contatos mais evidentes podem remeter ao desejo de Hermila em evadir-se, lá em O céu de Suely, ou às travessias operadas em Viajo porque preciso, volto porque te amo, o trabalho em conjunto com Marcelo Gomes.
E há um movimento mais amplo, de natureza cinematográfica mesmo, que vem desse pano de fundo do trânsito e da migração, para constituir saltos tanto no tempo quanto no espaço, fazer migrações de imagens, pôr o próprio cinema para se deslocar. Seria também o próprio pensamento fílmico de Karim se colocando investigações, para entrar em mais movimentos. A questão é que esses percursos parecem ser bem seguros, bem estruturados e arrumados, entrando em certa harmonia ordenada com uma lógica mais ampla de um cinema global. Parece que o filme encontra um refúgio muito confortável numa forma, numa reunião de imagens que costura passagens com fluidez e que toma as forças de vibração contidas e dispersas pela escritura como elementos de organização de um produto. O filme reúne muito disciplinadamente e encaixa no todo um conjunto de indícios de um cinema de fluxo contemporâneo, como Claire Denis e Hou Hsiao-Hsien, mas parece predominar nesse gesto menos o diálogo potencializador do encontro entre abordagens fílmicas do que a lógica de um romance das influências, bem próxima de um maneirismo que esvazia muito da singularidade da obra.
Existe já de início um tom muito marcado pela velocidade das motos que cortam a paisagem e pelos cata-ventos que tomam o horizonte, um tom de ação e de atrações. As variações vão se processar, permeadas, vez ou outra, por delicadezas, sutilezas e intensidades. Em um momento, estamos com Donato e Konrad diante do mar, quando a alegria se instala num dos instantes que talvez seja dos mais sinceros aqui. É uma cena que surge sem o rigor do cálculo e vem como abstração muitas vezes, numa câmera a borrar as linhas, a se desfazer de centros. Pouco se compreende do que é dito pelos dois, em meio ao barulho das ondas que batem nas pedras. Novamente são forças vindas dos corpos livres, tanto dos dois personagens quanto do próprio cinema.
É que parece haver toda uma tensão entre uma forma autoconsciente dos propósitos que a norteiam e os impulsos de colocar mais vida e vibração nessas imagens. Existem forças que movem as imagens, são as forças que fazem a tensão com as formas. O mar cria um impulso, ou pelo menos a água, quando esse mar não se concretiza. É o mar como mundo, como força que move os seres no mundo, e Berlim mesma, sem mar, é como uma cidade submersa. O mar parece ser outra das questões centrais aqui, esse mar que ocupa muito o quadro na primeira parte, que some na segunda, tomando um extracampo afetivo, e retorna na terceira, na sequência final. A experiência de estar no espaço é mediada pelo movimento das águas. Mar e cidade: pensar uma cidade à beira do mar. Donato passa a trabalhar em um aquário quando está em Berlim, distante da Praia do Futuro. Talvez tanto em um lugar quanto em outro existam inquietações que limitam os desejos, por isso há sempre uma medida de desassossego.
O filme se desgarra quando parecem pulsar mais na imagem o desejo e a experiência da imagem que explora ritmos singulares, as modalidades de aparição desvinculadas das zonas de conforto. Mesmo com a dança e a festa, é preciso tomar cuidado para que elas não se transformem em passagem para expurgar fantasmas, lugares que acabam se resolvendo como simples elemento da narrativa que alça os corpos a um momento para soltar energias contrariadas. Após uma briga, Donato e Konrad se refugiam, respectivamente, na pista de dança e na pista da motocicleta. Após a decisão de ficar e não sair do trem, Donato vai para a balada com Konrad, e a música agora vem como faixa sonora acrescentada como pano de fundo, já não como a própria sonoridade que embala todos os corpos reunidos, mas uma trilha que tenta sublinhar emoções.
Praia do Futuro é uma obra que pretende se inserir num circuito, que tem um anseio muito forte e evidente de se incluir em um mercado de festivais. O que a rigor não é um problema. Não é que o cinema precise dar as costas a esse mundo, mas a questão é como não encontrar aí um lugar de legitimação, no desejo muito imediato de visibilidade internacional. De uma sensação de esboço muito forte e tão potente que já surgia com o curta Seams, e que se adensava em Madame Satã e O céu de Suely, o cinema de Karim Aïnouz parecia se instalar na conformidade completa das estruturas com Abismo Prateado. E agora Praia do Futuro é a expressão de uma curva, em certa medida. É ao mesmo tempo um retorno a uma vitalidade maior do que a obra anterior apresentava e um ponto em que a chegada a determinado patamar parece apaziguar impulsos. Um filme que se apresenta como tensão interna exposta, produto muito bem modelado para ser inserido nos circuitos internacionais, que se ajusta muito bem a certa dinâmica instituída. Um filme em que as formas podem enrijecer as forças, se ele não dançar tão desordenadamente quanto Donato. Porque o risco é parar o movimento.