Praia do Futuro, de Karim Aïnouz
O mar é simples metáfora em Praia do Futuro. Ele jamais é superfície. Ele é a profundidade de um símbolo dicotômico: de um lado, o perigo, o abismo, o afogamento e a morte; do outro, a aventura, o deslocamento, a travessia, a mudança e a concretização de uma utopia ou futuro. Tudo no filme parece orbitar em torno destes pólos, que a imagem do mar representa. A paisagem é menos uma concretude sensível e mais uma muleta representativa que serve à trajetória dos personagens.
Duas cenas complementares enfatizam este tipo de construção: a conversa entre Donato e Konrad na praia aterrada de Fortaleza – seria Praia de Iracema? –, como se estivessem dentro de um mar que já não está mais ali; e o diálogo entre Donato e Ayrton na praia alemã, como se caminhassem dentro de um mar que também não está lá. Em Fortaleza ou Berlim, praia sem água é símbolo de desaparecimento: a princípio, mar soterrado e morto; depois, mar deslocado e transitório. Donato não morre, ele apenas muda.
“Escrevo para dizer que eu não morri. Eu só voltei para casa”, reforça a voz off epistolar de Donato. Uma fala/escrita grandiloquente para um final igualmente grandioso, que condensa tudo o que já é pontuado ao longo do filme: buscar profundidade no que só pode ser superfície. Por mais que exista o esforço da diluição das estratégias narrativas pelo uso das elipses que nem tudo explicam, ainda há uma vontade de profundidade, de encontrar algo que se acredita estar por trás das imagens e não apenas inventá-las com seus modos singulares de afetar o sensível.
Konrad talvez seja o personagem em que mais se cristaliza este desejo de profundidade. De algum modo, ele está ali para instaurar e domesticar a culpa. Quando Donato quer voltar para Fortaleza, Konrad diz: “Covarde!”. Quando Donato não sabe como lidar com a chegada do irmão em Berlim, Konrad diz: “Você não pode continuar fugindo da sua família”. Quando Donato absorve a morte da mãe, Konrad diz: “Sinto muito pela sua mãe!”. Konrad está ali para apontar as dores de Donato, por vezes amenizadas na pista de dança.
Os momentos de dança na boate em Praia do Futuro estão a serviço da expurgação de uma dor – algo semelhante ao modo como Violeta dança Maniac em O Abismo Prateado. Mas a dança entre Donato e Konrad no apartamento é diferente: ela não reforça ou sublinha o tom melodramático da canção Aline, mas produz outro modo de colocar os corpos em movimento. Há algo que se acumula nesta dança, em que o movimento das mãos de Donato põe a dançar um retrato até então inanimado na parede. A imagem aqui vibra intensidade. Ela é invenção de mundo e não apenas instrumento de uma intencionalidade.
É possível encontrar em Praia do Futuro três imagens que vibram se pensadas na conexão entre elas: os golpes de brincadeira entre os dois irmãos na beira da praia; os socos de Ayrton para o vazio, pouco antes de Donato ir embora; e o reencontro no elevador que culmina em murros e abraço. É um tríptico que produz um embate em transformação e que fricciona a dinâmica complexa entre super-heróis – Aquaman e Speed Racer – e corpos humanos em colisão – Donato e Ayrton.