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A imaginação que resta

A imagem que falta, de Rithy Pahn

Se uma imagem falta, é preciso inventá-la. Na busca que o cinema de Rithy Pahn faz aqui, talvez exista o desejo de arrancar possibilidades a partir de um mundo que foi devastado. O gesto do realizador persegue sobrevivências para o imaginar. É que uma política da memória precisa se constituir em movimento com uma insistência em voltar ao acontecimento. Em certa medida, A imagem que falta retoma um debate já abordado por filmes como Shoah, de Claude Lanzmann, que pode remeter a certa noção do irrepresentável. Se a saída de Lanzmann era dedicar-se à palavra, à busca do testemunho expresso oralmente, Rithy Pahn escolhe reencenar, mas de forma bastante singular, recorrendo a bonecos de argila que remontam ao microcosmo de uma aldeia no Camboja e às próprias memórias do realizador.

Imagens que restam. Há também toda uma pesquisa das visibilidades produzidas durante o regime do Khmer Vermelho. São mostrados os rolos de película em deterioração, a matéria de uma memória que percorre o tempo. Vemos os líderes do regime em seus eventos, os modos de trabalho que estruturavam a sociedade, as expressões das hierarquias e das organizações dos corpos. O filme vai elaborando um trabalho de composição entre essas imagens de arquivo e as situações que se desenrolam com os bonecos em reencenação no presente. Ele expõe temporalidades múltiplas do visível, que se materializam em texturas diferentes e em percursos singulares pelo espaço. As imagens são postas em trabalho, para que se cruzem e façam surgir também uma nova imaginação, outra possibilidade de enfrentar a catástrofe a partir de aparições inéditas que só o cinema pode possibilitar, quando põe em contato os fragmentos, quando monta e remonta, enquadra e reenquadra e faz a cena reenviar para o acontecimento, como tentativa de criar outras maneiras de apreender um mundo e de apontar para outro campo de virtualidades.

É aí que a questão do irrepresentável ganha outras tonalidades, para se transformar em um pensamento que já não coloca mesmo a dimensão de representar ou não representar (Jacques Rancière já desenvolveu toda uma problematização a respeito dessas separações). Não está proibida a priori nenhuma imagem, porque não podem existir mesmo imagens a priori. Fazer a imagem faltar é assinalar que o filme não pode ser senão movimento e tateio, processo de atravessamento da história, enquanto criação dessa mesma história. Buscar uma imagem que falta é colocar-se na contramão da mostração dos clichês, da reiteração do visível que se quer sempre mais visível. Em dado momento do filme, ouvimos que, se fosse encontrada a imagem da execução de um dos moradores, ela não poderia estar ali. O que se escolhe não expor parte justo de opções éticas, não tem nunca lugar como interdição moral.

A insistência do cinema na busca tem a ver com uma afirmação da vida. É a vida que insiste. Sobrevida, sobrevivência. Os povos cambojanos estão sob a terra, e é de terra que são feitos os bonecos que irão reencenar as tragédias. Os povos que resistiram, com silêncio, com poucas palavras, com a plasticidade dos seus corpos, apontam para a possibilidade de uma imagem. Eles são o que resiste, é a memória deles, mais uma vez, que retorna, que resta, que vem re-existir. Fragmento repentino de uma mulher que dança. São lampejos, fagulhas, é um limiar de visível. Somos surpreendidos por um momento que vem e que não segue, uma reentrância em meio a uma profusão de imagens completamente diferentes. Imagem estrangeira, que pode apontar para um ato de resistência singular. E Rithy Pahn nos diz justo aí que a revolução se dá no cinema.

Mas o que seria um ato de cinema como ato de resistência? A imagem que falta passa, aos poucos, a se investir também de todo um problema cinematográfico ainda mais complexo, que passa a ser o da fabricação de um filme político. Se a revolução se dá no cinema, é porque fazer um filme não é, não deveria ser – exigência ética, mais uma vez, não moral – um ato de subordinação. Não pode ser subordinação duas vezes: nem a um fora, ao mundo em deterioração, nem ao próprio cinema como mero exercício de estilo. Estar insatisfeito com as formas, para extrair dos processos as forças. A política de Rithy Pahn talvez esteja nas próprias torções e retorções de caminhos que são como pausas e tomadas de fôlego para seguir. É um combate em torno de como dizer, fazer ver, querer existir. É o desejo de desencadear cenas inéditas a partir da reencenação que se liga diretamente a uma infância, a do próprio realizador, mas também a uma infância do homem como lugar da experiência, àquela do balbucio, da possibilidade sempre nova de criar outra linguagem, de reposicionar dizibilidades.

Uma imagem faltante é aquela que é virtual, sem ainda ser atual. Ela é real, mas precisa se atualizar num campo de experiência. Ela talvez esteja numa restância. Estamos a todo instante entre imagens que faltam e imagens que restam. Nas imagens consensuais do regime, projetadas nas praças – e agora na maquete com os bonecos –, vemos um cinema oficial que queria mostrar o heroísmo dos cambojanos com arcos e flechas fazendo frente aos colonizadores. É toda uma disputa em torno do que pode o cinema. Imagens sobre imagens, projeções sobre reencenações. O trabalho aqui se dá como contato constante de matérias, para perceber no intervalo um respiro ou alguém que resistiu. Aquele cinegrafista que fez imagens com um batimento bastante singular, com uma espessura e uma ondulação de contrastes que fazem especular um desejo de perturbar ordenações. Com o filme, nos inquietamos diante dessas imagens. Queremos acreditar sempre que ainda é possível imaginar.

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