Quando eu era vivo, de Marco Dutra
Sobre artifício, sobre nada. Sobrenatural. Quando Eu Era Vivo não é uma obra a respeito de alguma coisa. É um filme de terror com a Sandy. E se efetua, justamente por essa economia esdrúxula.
Os urros do mendigo da rua assustam, mas o filme de Marco Dutra não é um terror social como algumas nuances de O som ao redor, de Kléber Mendonça Filho, por exemplo. Filme de gênero no sentido mais Hollywoodiano, com todos os signos, os clichês, a estrutura narrativa e cinematográfica, mas não sem alguma argúcia de criar dentro disso uma mise en scène própria. Com fofão na decoração e disco ao contrário que poderia ser da Xuxa, mas provavelmente por razões jurídicas acabou sendo da Elizângela.
Invenção é saber enxergar no óbvio? Ou falar do que não existe. Ao contrário do filme de Kléber Mendonça, que utiliza vários recursos do cinema de horror para construir, se não uma tese, mas uma espécie de crônica social – e esse é justamente seu maior mérito, transformar um quase esquema em uma encenação poderosa – Quando Eu Era Vivo não tem tese, a não ser nas críticas que as inventam. Todo filme deve ser inventado, essa crítica é uma ficção, é óbvio. E a equipe de Marco Dutra inventou a deles sozinhos. E isso não é um defeito, nem uma qualidade, mas justamente a força do filme.
‘’Gratuidade que dá asas à obra de arte’’. É assim que Antônio Cândido se refere à ficção literária que escapa da preocupação de um projeto de nação que boa parte dos nossos escritores encampou ao longo da nossa história. Fiquei pensando sobre isso no filme. Não vi o filme fazendo análise, ou projeto, por mais que uma crítica quase sempre arranque isso e eu não escape.
‘’A coragem ou espontaneidade do gratuito é prova de amadurecimento no indivíduo e na civilização. Aos povos jovens e moços parece traição e fraqueza’’. Não faço aqui uma defesa da divisão entre entretenimento e cinema de autor. Só posso pensar como é pobre essa secção e como já há mais de cinquenta anos já está superada: ou seja, é atualíssima.
Forja-se aqui a carne de um filme. Li em algum lugar que o filme tem poucos sustos. Parece que suspense não pode ser também horror. Como nos filmes de Hitchcock, vemos pairar o vilão sobre o mocinho o tempo todo. Mas o mocinho aqui é um pai velho e fora de forma que toma whey protein. E o diabo, o vilão, não está no contra-campo ou atrás do mocinho, cúmplice do espectador. O diabo é uma imanência na decoração, no estado mental do filho que o mocinho da terceira idade sabe e sente a presença. Aí o horror. Sabemos o tempo todo que uma tragédia vai acontecer, e ela é anunciada pelo canto doce da Sandy.
A presença da cantora, aliás, é um acerto. Maquiada de Sandy, atuando como ela mesma e cantando uma canção ocultista da mesma forma que a gente imaginaria Sandy fazendo. Não ignora a figura pública, brinca com ela. Cantar uma canção diabólica com voz sertaneja. É uma piada, e funciona. É horror também, pelo inesperado.
Existe uma potência nas atuações que é singular dentro da nossa filmografia, um esforço de encontrar um tom típico de cinema de gênero, mas meio fora de lugar, precipitado como se zombasse da própria cafonice dos clichês, como quando a vidente começa a engasgar só de falar das bromélias das quais tem alergia. Não é só um comentário, mas também uma tentativa de renovar e firmar um novo pacto com o espectador.
Tudo aqui está suspenso e puro gênero, e por isso é uma delícia a caricatura de vidente de Gilma Nomacce, seus tremeliques e seu ritual de benzedeira/exorcista. Sua atuação combina com o mobiliário kitsch da casa, que vai se transformando da assepsia para o ambiente retrô. É como se o personagem do filme que volta pra casa brincasse de instagram com os móveis da casa. A direção de arte constrói e reconstrói o espaço, a luz muda, é uma anatomia de uma transformação. Todo filme de terror é um pacto demoníaco. Uma redenção bizarra, que é e não é redenção. Redenção psicanalítica de um amor que sempre esteve ali.
O dia em que assisti Quando Eu Era Vivo guarda uma triste coincidência: a da morte de Eduardo Coutinho, possivelmente nosso maior cineasta, assassinado pelo próprio filho, no que consta até agora. Fico pensando no personagem do pai, interpretado por Antônio Fagundes, em ótima atuação, e sua relação doce com o filho, que vai enlouquecendo/sendo possuído e tornando-se uma ameaça que o pai percebe e teme, mas que na maior parte do tempo aceita. Existe um amor muito bonito, mesmo na beira da loucura e das ameaças do filho.