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Infância sem romantismo

A infância nua (1968), de Maurice Pialat

A infância em Pialat partilha de um pensamento maduro e tardio. Não estamos mais diante daquele desencanto ainda romântico de Os incompreendidos (1959), de François Truffaut. Apesar de ter sido financiado pelo cineasta da nouvelle vague, este primeiro longa-metragem de Pialat é atravessado por um olhar mais duro, mais sombrio e violento sobre a infância. É uma imagem contaminada pelo sentimento do fim da revolução de 68: por isso, o filme abre com uma passeata com faixas exigindo “plano de carreira para adultos” e “trabalho para jovens”. A infância nua é consciente de seu contexto histórico, sem precisar se transformar em filme-tese. Há um esforço de ruptura, sem estabelecer um modelo programático. A própria trajetória do garoto François Fournier é marcada por uma fissura. Menino órfão, ele jamais encontra um lugar, seja físico – não tinha sequer um quarto na primeira casa de adoção –, ou afetivo – a carismática avó da segunda casa logo morre, quando o garoto já tinha se afeiçoado a ela. No novo lar, a mão que cuida é a mesma que agride. A montagem de cortes bruscos inclusive reforça a ideia ao colocar em sequência a cena em que a mãe adotiva limpa o rosto de François com a cena em que ela bate nele com a mesma toalha.

Mas a ruptura persiste na acumulação dos planos, no encadeamento das cenas, que não obedecem necessariamente uma lógica dramática bem definida. Por vezes, a mise-en-scène de A infância nua parece controlada, com seus longos planos fixos. Em outros momentos, ela opera um descontrole, sobretudo quando deseja valorizar o gesto espontâneo de quem está em cena. Isso acontece quando os próprios atores não-profissionais se dispõem ao jogo de autoencenação. A espontaneidade do gesto e da fala é presente especialmente nas sequências em que participa o casal de idosos Marie-Louise Thierry e René Thierry, pais adotivos na vida real. Eles recebem François, depois que sua mãe adotiva anterior o abandona. Na cena em que o senhor Thierry fala a François sobre o passado de seus parentes e amigos retratados nas fotografias que ilustram a sala, a conversa é fluida e improvisada. Em outra cena, enquanto a senhora Thierry relata ao assistente social sobre a convivência com François, ela confessa “se perder” no que está falando. O filme não exclui as falhas no discurso, tampouco a precariedade na hora de filmar – a sombra do microfone inclusive aparece em um plano ou outro, sem comprometer a força da cena. Ao assumir a precariedade da encenação, A infância nua se aproxima da complexidade da vida, que é feita de lacunas, de incompletudes, de vazios, mas também de momentos de intensidade. François tanto faz besteiras, quanto é capaz de ternura. Sua dificuldade de se integrar ao mundo não é passível de redenção. Não há romantismo, nem nostalgia. Há apenas a infância crua, triste, nua.

* Filme visto na mostra O Cinema de Maurice Pialat, no Centro Cultural Banco do Brasil, do Rio de Janeiro.

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