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Moral e modelo

Ninfomaníaca – volume I, de Lars von Trier

Há algo que parece fundamental nos procedimentos deste Ninfomaníaca – volume 1: a imagem é sempre encadeada como recurso de significação. Lars von Trier parece, nesse sentido, um cineasta bastante estruturalista. Tudo se insere em um conjunto de amarras que pretendem não dar muita margem de sentido ao espectador. O filme logo se apressa em trazer um objeto invocado pela fala ou imediatamente recorre à palavra para reiterar o visível. É o reino do significante. O trabalho da ficção é aqui o de constituir um conto com moral. A própria protagonista, Joe (Charlotte Gainsbourg), anuncia uma intenção dessa ordem em determinado momento.

O quarto em que ela é recebida por Seligman (Stellan Skarsgaard) torna-se um centro irradiador, o ponto de onde a produção de palavras e a de imagens vão se confundir sempre como uma elaboração de mesma natureza, uma constituição de enunciados linguísticos. A analogia dá o tom. Ora entre a pesca e a procura por um parceiro sexual, ora entre a composição musical e a experiência com amantes diferentes. Todo um apanhado de recursos é lançado para garantir a precisão do que está em jogo na cena. Parece que nunca estamos diante da possibilidade de um processo. Ficamos muito mais na ordem do já dado, do esquadrinhado e do que precisaria apenas ser reafirmado pela experiência do cinema. No regime do significante, é a ditadura da redundância que predomina.

Sempre encontrar um correspondente. Já nos momentos bem iniciais, somos mergulhados em uma experiência sonora que poderia ter toda uma potencialidade, um jogo de sugestões, uma possibilidade para o extracampo. Sem imagens, temos apenas ruídos. Mas rapidamente somos atirados para um visível que retoma cada sonoridade já devidamente apropriada por um objeto, já efetivamente atrelada a um lugar. Reino da correspondência entre as partes. É que toda a lógica aqui é a de meios que têm fins, a de uma encenação orientada pelo princípio da hierarquia de temas, de posições, de posturas dos corpos. É, sobretudo, toda uma estrutura guiada por uma dinâmica já estabelecida entre visível e dizível.

A codificação capturou o choque. A sexualidade em Ninfomaníaca era incensada pela possibilidade de provocação. Todo um contexto prévio era alimentado pelo próprio diretor. Mas o conto moral de Joe faz dos contatos dos corpos uma oportunidade para repetir teses, como já era visto em Anticristo (2009), todo trabalhado no domínio do simbólico e do metafórico. Não há um choque da ordem da sensação, de uma sensorialidade percebida na matéria plástica e sonora. Sempre o que se insinua é logo capturado por uma necessidade de tudo encadear em ordem discursiva. Quando Joe conta sobre a primeira experiência sexual com Jerôme, os números que enuncia são mostrados na imagem, quando Seligman fala sobre o número de Fibonacci, também surgem intervenções gráficas na tela, em acordo e harmonia com o percurso da enunciação.

E quando estamos na sequência em que a composição musical de Bach vira o modelo para analogia com três amantes de Joe, toda a montagem se empenha em dar à imagem um caráter de retórica. Os elementos vão se acumulando aos poucos: um leopardo aparece quando é indicada a semelhança dele com um homem, o baixo contínuo, citado alguns momentos antes, retorna no momento exato em que poderá se encaixar perfeitamente no jogo discursivo, e finalmente teremos a tela dividida em três, ao som da música de Bach, quando cada história é colocada lado a lado na perfeita harmonia que o filme já tinha previsto. Aqui, mais do que nunca, parece que foi esgotada toda possibilidade de choque, já que não parece haver qualquer saída para a linha traçada pelo trabalho do filme. Que choque, afinal, pode surgir, quando a ficção é despotencializada justo na sua capacidade de forjar, de sair do ponto fixo e fazer o movimento?

Talvez não haja espaço para o enunciável no cinema de Lars von Trier. E se o significante a tudo arrasta, às formas fílmicas só cabe uma estrutura modelar. Onde tudo parece precisar de uma rígida indicação de sentido, só restam moral e modelo.

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