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Do fetiche ao pastiche

Azul é a cor mais quente (2013), de Abdellatif Kechiche


Lá pelos minutos finais de O segredo do grão (2007), do franco-tunisiano Abdellatif Kechiche, há uma imagem que nos interpela: o plano detalhe de uma barriga saliente e com imperfeições, rebolando ao ritmo de uma dança do ventre. Há o investimento da câmera na proximidade do corpo desta imigrante árabe a dançar como um gesto de solidariedade para sua comunidade que tenta sobreviver a duras penas na França. No novo filme do diretor, Azul é a cor mais quente (2013), há também uma imagem que interpela: o close do rosto de Adèle. Um rosto sempre belo. Por vezes, com cabelos desalinhados, com boca suja de molho de macarrão ou com catarro no nariz, mas ainda assim um rosto belo.


A beleza dos corpos jamais é posta à prova em Azul é a cor mais quente. Não há mais o interesse na materialidade de um corpo qualquer. O que é posto em cena são os corpos jovens e belos de Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux. É preciso compreender que não se trata de questionar aqui a opção por filmar corpos belos. O problema não é tanto “o que” está em cena, mas “como” colocar em cena. E, no filme, os corpos são assujeitados ao olhar e, por extensão, ao desejo do diretor. Ao ser interpelado por sucessivos closes, o espectador também é co-partícipe deste olhar e deste desejo. Um desejo via de regra masculino. Um olhar heteronormativo. Ou seja, talvez o problema da heteronormatividade no filme não se situe tanto nas personagens, na forma como elas se relacionam. De certo, tem um pouco disso sim – e mesmo que isso seja um problema do mundo, não é tarefa do cinema apenas reproduzir, como mero testemunho naturalista das coisas, mas questionar, fazer pensar, criar outro mundo. No entanto, o que aqui se chama de “olhar heteronormativo” está bem mais evidente na forma como Kechiche dá a ver os corpos destas mulheres, como ele as enquadra, o que ele deseja delas. Há um fetiche pelo rosto de Adèle. Sem dúvida, existe o interesse pela superfície, pela textura da pele, por uma imagem sensorial. Mas são planos tão próximos, excessivos e desequilibrados de um rosto belo, que só falta a câmera entrar na boca carnuda de Adèle. A câmera seria então a metáfora de um pênis, pré disposto a uma relação oral? Uma questão a ser pensada. Por vezes, este enquadramento tão fechado soa agressivo. Em outros momentos, há uma docilidade com este rosto ingênuo e sensual de Adéle.


Como esta imagem pode chegar ao espectador? Quais os desdobramentos que ela pode ter? Lembro agora de uma frase do cineasta alemão Rainer Werner Fassbinder que dizia que “mais cedo ou mais tarde, os filmes devem deixar de ser filmes, para que nos perguntemos quais relações eles estabelecem com a nossa vida”. Talvez o problema da análise de um filme é que ele seja sempre compreendido de forma isolada, sem pensar seu contexto. No caso de Azul é a cor mais quente, este olhar heteronormativo contamina inclusive as estratégias de divulgação do filme. Polêmicas a parte, a encenação voyeur torna-se mero pastiche publicitário. E o filme também pode ter culpa nisso.


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