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Macarrão na boca

Azul é a cor mais quente (2013), de Abdellatif Kechiche

A câmera enquadra Adèle meio de baixo, angulosa, atrás de sua bunda, enquanto ela toma banho. Um voyeurismo meio esquisito. Uma boca carnuda filmada à exaustão. Brigitte Bardot. Suja de macarrão e de catarro, quase sempre. Certo fetiche. Porque é diferente quando a protagonista é sujeita do desejo, e não objeto. Poderia ser algo da relação de Adèle com a namorada do cabelo azul, mas é do filme mesmo. Talvez, aliás, haja uma certa idealização sensual, sensorial, que às vezes me parece quase naturalista. Não é um filme naturalista, certo: não se realça um certo grotesco como natureza do homem, da paixão, de uma maneira moralista. É meio o avesso disso, outra ponta da lógica.


É possível que tenha certa antipatia minha à recepção calorosa do filme, posso exagerar um pouco. Mas tem algo ali. Adèle nunca esfrega o rosto quando chora, principalmente se lágrimas escorrerem junto com meleca do nariz. Ela é pura, descabelada, uma figura perfeita de ingenuidade selvagem.


A segunda parte do filme é bem melhor que a primeira. Ver uma paixão se desfazendo, incensada pelo filme com beijos na contraluz do sol e uma construção tão poderosa, desmoronando também com delicadeza feroz. É um movimento um tanto original no cinema, pelo menos pelo que eu lembro.


Adèle se apega até o último fiozinho de tecido da sua paixão. Não por acaso são dois capítulos, como avisa a cartela no final do filme: capítulo 1 e 2. Esses dois momentos são bem claros (se alguém ainda não sabe, trata-se de uma adaptação de quadrinhos).

Gosto muito do final. Adèle olha-se no espelho e certifica-se que sua bunda fica bonita no vestido que escolheu para ir à vernissage para encontrar a ex-namorada. Agora é a garota que olha.


Tornou-se mulher? Uma bobagem, não vejo romance de formação, nem deformação, é basicamente uma história de amor, intensa, mas que vai se desfazendo com tanta ferocidade quanto se fez. Já ouvi mais de uma amiga dizer que amores lésbicos são assim. Preconceito? Agora falta alguém fazer um filme sobre um casal apaixonado e meio broxa.


Ainda sobre lugares comuns, o filme parece não se esquivar exatamente deles (ostras?), ao mesmo tempo em que é impossível se esquivar dos nossos. Soube de uma crítica de que o filme seria ‘heteronormativo’ porque o casal reproduzir o mesmo padrão de relacionamento de casais de sexos diferentes, possessivos, monogâmicos e com papéis bem definidos. Não acho que seja o caso. É a vida das duas, há lésbicas e gays que reproduzem esse modelo, há casais héteros que se constituem de outra maneira. É ainda um problema do mundo, uma questão em aberto. O filme não precisa resolver isso.


Uma das sequências de sexo mais lindas que eu já vi nada vida, comenta baixinho o rapaz na cadeira ao lado, o que é curioso, porque achar a cena bonita não impediu que o rapaz risse. É importante dizer que o sexo poucas vezes foi encenado de maneira tão frontal, com tapas na bunda, 7 minutos, li na internet. Fico pensando quem cronometrou. Mas isso é uma virtude (!?) do filme. É preciso falar de moral aqui, mas disso eu não sei. Sexo ainda pode salvar ou chocar alguém? O sexo é intimidade, um filme é o que? Não sei.


Existe uma decisão política (!?) de mostrar os corpos, aliás, o prazer, de não virar a câmera para as roupas no chão ou a janela enquanto se ouve um leve estalar de pele ou uma música cafona entra em fade in. Porque mostrar o sexo. Não é uma pergunta, está escrito junto. Nada contra mostrar o sexo, mesmo que deixe algumas pessoas desconfortáveis – ‘’moralistas!’’, vão gritar prontamente alguns.


Não são questões no filme, ou não são questões do filme. A verdade é: não tenho nenhuma opinião sobre as cenas. É preciso ter opinião sobre uma cena de sexo? Escrevi três parágrafos sobre isso, mas espero ter deixado claro que se trata certamente de uma bobagem.


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