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Do erotismo visual ou sobre sexo e morte

Um estranho no lago (2013), de Alain Guiraudie



Se o filme Um estranho no lago (L'inconnu du lac, 2013) apresenta cenas de masturbação e de sexo oral (com pênis ereto), é a imagem do “pau mole”, de forma soft, sem desejo ou excitação, que compõe, tantas vezes, os quadros do filme. Sozinho, ao lado de outros, mais escondidos ou mais visíveis, ele compõe o quadro, se diz ali, e faz parte do olhar de quem decide assistir ao filme. A audiência é também testemunha de um gesto que procura o corpo masculino de um outro modo. Talvez mais frágil, mais cotidiano, sem a excitação provocada pelo desejo, sem receio de colocar a genitália no mesmo plano do rosto ou do corpo dos atores. Parece compor o que tenho pensado como uma “política do pau mole”: trabalhos que falam de sexo e de sexualidade masculina, de seus desejos, que, se decidem pela obscenidade da visibilidade do pênis (na tela, na fotografia, na performance), não querem insistir na imagem do falo e sua simbologia, mas preferem a imagética do pênis cotidiano, mole, que está presente por debaixo de nossas calças muito mais do que os momentos em que ele está a pino. Profanar esse sexo é inseri-lo “nu”, sem desejo, sem excitação, nos momentos cotidianos; é dobrá-lo, escondê-lo, abri-lo, desenhá-lo.


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O movimento erótico está, ali, muito próximo do movimento em direção à morte. Para Georges Bataille (1), o erotismo é uma forma de escapar da descontinuidade a que está destinado. No fechar do seu corpo, no processo de se tornar indivíduo, o sujeito está fechado para e em si. No encontro erótico, há a união dos corpos, uma espécie de entrada, de encaixe, que vai atingir a total sensação de continuidade no momento do gozo. De perder-se no outro. Daí, a melancolia pós-coito. Melancolia de se encontrar novamente, e a despeito daquela experiência, como ser descontínuo.


No filme de Alain Guiraudie, morte e sexo vão se constituindo cada vez mais próximos ao longo da narrativa, e vão produzindo sentido um ao outro. A praia, apropriada pelo desejo homoerótico, desenvolve também uma aura de morte. Um estranho acaba por nos colocar em um espaço entre a confiança que o erotismo provoca no encontro com o Outro, presente numa espécie de verdade desse encontro e desse prazer, ao mesmo tempo em que dele duvida. Duvidar sobre o erotismo e o desejo sexual – não duvidar de sua presença e força física, mas de seu poder de ilusão e de empoderamento de si – é um dos movimentos ao longo do filme.


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Acho o filme repetitivo. As falas se repetem, os dias se repetem, as ações e personagens se repetem. No entanto, essa repetição parece ser mesmo proposital, no sentido de esvaziar aqueles atos, gestos, e esvaziar o lugar. Vazio de pessoas, de falas, vazio de muitos contatos, um lugar afastado. A repetição, então, é proposital, até para constituir, ali, uma outra temporalidade, distinta da temporalidade do tempo do trabalho, das cidades grandes, das multidões, das obrigações cotidianas. Um tempo que é do filme mesmo. Mas também no tempo diegético. O tempo da espera, do olhar, do sexo que também se repete. Mas é justo nesse ambiente de repetições que é possível, ao longo do filme, ver as nuances e os gestos mínimos: o ciúme de Henri (Patrick d’Assumçao), os olhares dos nudistas, os pequenos sons locais.


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O medo e a tensão que despontam ao longo do filme parece ser uma espécie de metáfora para uma tensão específica da pós-AIDS. Não se sabe ao certo em quem confiar: o parceiro sexual pode portar do vírus HIV e, portanto, numa ocasional relação, pode-se contrair o vírus (tão ainda associado à morte). Faz parte do filme os diálogos sobre e a possibilidade de relações sexuais sem camisinha, em que está presente também esse tipo de insegurança: o prazer do sexo anal ligado ao risco (excitante) de contrair ou não AIDS. Alguns diriam que essa atitude se assemelha a uma “roleta russa”, mas não sei se é bem isso. Parece um desejo de escapar do discurso disciplinador das sexualidades empenhado pelo discurso médico do sexo seguro. Um gesto de autonomia para decidir que tipo de relação ter, usar ou não camisinha, dizer e fazer de si e do próprio corpo, sem ter que se comprometer com a política vigilante da camisinha e seus discursos. De todo modo, o filme parece habitar esse espaço da desconfiança do outro, da desconfiança do sexo do outro. As relações entre Michel e Franck são sempre sem camisinha, em um relacionamento em que há recíprocas desconfianças e medos desde o primeiro contato.


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As temáticas homoafetivas ainda são passíveis de serem consideradas risíveis, no cinema, no teatro, nas ruas. Não à toa, a pré-estréia no Brasil de Um Estranho no Lago acontece em meio ao lançamento do filme de Bruno Barreto Crô, que se baseia em um personagem gay de grande sucesso de uma telenovela brasileira. De tom cômico, o personagem principal desse filme é protagonista de cenas voltadas ao riso do público, investindo nos seus trejeitos e seus gestos para garantir a comédia. Ou seja, aqui, a homossexualidade ainda é tratada de forma cômica, e sua aceitação passa pelo riso e deboche.


O filme de Guiraudie investe em um outro tipo de apresentação das incursões homossexuais e homoafetivas, mas, na recepção brasileira, parece ainda sofrer com um certo tipo de risibilidade a que os discursos e gestos homossexuais foram submetidos histórica e culturalmente no nosso país e na nossa cultura. Ou seja, as cenas de encontros sexuais, de possíveis diálogos sexuais entre pessoas do mesmo sexo são, a princípio, passíveis de gerar riso nesse público, como se, a priori, fosse algo engraçado. Parece ainda ser a forma de aceitação desse público à visibilidade das narrativas gays e queer: o sujeito do sexo masculino que assume trejeitos e gestos da performatividade do feminino – uma certa postura, a fala sobre promiscuidade, a penetração anal, um olhar de canto de olho – é uma imagem engraçada a princípio. Não que o deboche não possa existir ou ser parte da construção estética de uma obra, mas o hábito de a travesti e o homossexual não serem levados a sério impede que outras questões, gestos e afectos sejam passíveis de ser percebidos pelo público espectador e percam mesmo suas potências.


(1) BATAILLE, Georges. O Erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987.







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