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Poéticas do desvio

O que se move (2013), de Caetano Gotardo



Há em O que se move, de Caetano Gotardo, um recorrente desvio para situações que já não se conectam com uma cadeia de eventos, que já não se inserem num desenrolar de uma história. São planos de puras ações sem qualquer finalidade, sem qualquer preocupação em rapidamente se amarrar a uma estrutura narrativa. A imagem do cisne na lagoa parece bastante emblemática desse procedimento. A câmera observa os movimentos dele. Ela se distanciou dos personagens que acompanhava, eles foram brincar no parque, numa aposta em perambular e só se falar caso se encontrem acidentalmente de novo. E o filme ficou com o cisne, o espectador ficou com o cisne.


É nesse desvio que parece haver uma possibilidade de poética do movimento. É nessa liberdade de mudar completamente nosso foco, ir para longe e distrair-se, que existe talvez uma aposta numa maneira de espalhar-se. Não uma distração como fuga da dor, que tanto percorre a obra. É uma ida para longe da própria captura do trágico por qualquer esquema, por qualquer sistema que o integraria a uma lógica de causa e efeito. Não há como explorar essa dor e extrair dela o espetáculo. Não é possível tê-la, dominá-la, o cinema só pode vê-la enquanto a perde, só pode filmá-la, se tiver consciência de que não pode tomar posse dela. Ela escapa da estrutura.


Porque se as mães também perdem, não seria justo que as imagens tomassem para si qualquer coisa. E então, há toda uma maneira muito cuidadosa de olhar, de acompanhar. As três histórias de O que se move lidam, muito fortemente, com a dor trazida de notícias de jornais, de tragédias cotidianas. E sempre são encerradas com uma canção e, mais ainda, com uma coreografia de alguma natureza. A cena da delegacia, os garotos na máquina de dança, os ginastas vistos na televisão da churrascaria. Cada momento tem uma elaboração própria, mas todos parecem investigar uma maneira de o corpo estar na cena, justo quando a dor ganha uma intensificação maior. Na delegacia, os corpos têm movimentos muito mínimos, param, compõem um quadro. Enquanto canta, a mãe da segunda história vê justo os meninos brincarem na máquina onde ela mesma tinha estado no dia anterior. Na churrascaria, a mulher vê o filho que reencontra, e as imagens dos atletas surgem com movimentos de repetição e exaustão.


Canção e coreografia são simultâneas. Entoar uma melodia e pensar uma escritura do corpo no espaço. As mulheres cantam quase como se ainda falassem. Uma fala que traz enunciados bastante articulados com a própria tragédia em jogo na cena, mas uma fala liberta de qualquer finalidade discursiva. O momento de cantar não é a parada para expor um virtuosismo ou para fazer do sofrimento uma oportunidade para uma performance brilhante. É como canção que o corpo coloca em questão as próprias angústias porque aí ele flexiona as palavras em outra toada, ele modula a palavra e a faz vibrar. Alterar modos, alturas, timbres, escalas: aqui, a canção libertou os corpos de exprimir o dizível como simples informação. Fazer a palavra entrar pela via da canção passa a ser um gesto de liberar a fala de um uso, de constituir dizibilidades puras.


O que se move elabora, a todo o momento, gestos desviantes. O movimento do filme é o movimento da criança que brinca com grãos bem pequenos. É gesto de brincadeira, que já se emancipou de dar à imagem uma finalidade e pode se conectar ao mundo no puro momento do livre jogo, da experiência de tocar, de ver, de sentir. É o movimento dos corpos da família que brinca de parar, como se congelasse, para depois retomar. O gesto fílmico virou uma poética de desmoronamento das ações. O pai da segunda história entra numa sala completamente atordoado, sem saber por que entrou, interrompendo uma gravação. Ele está desorganizado, não sabe o que o move, nem o que o faz se sentir mal. A mãe da terceira história não consegue dirigir, precisa de outra pessoa para fazer isso e depois se vê bastante perturbada por não saber onde colocou o papel com o endereço.


Os corpos estão, completamente, tomados por forças que embaralham, que desconcertam e já tornam difícil qualquer movimento que se funde numa relação mecânica com o mundo, numa relação pautada por objetivos. E o próprio corpo do filme é tomado por essa energia que afirma uma tendência de tensão com modelos de ação. Não cabe ao corpo, ao cinema, ao corpo-cinema, agir. Desviar é ver no que se move a potência de uma imagem na qual podemos nos deter, independente de qualquer encaixe num sistema de ações. Talvez seja por isso que, lá no parque, o filme ficou com o cisne.

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