Um toque de pecado (2013), de Jia Zhang-ke
Diante do contexto das transformações sócioeconômicas da China e seu constante e predatório desenvolvimento capitalista global, o cinema de Jia Zhang-ke sempre pareceu acenar para a possibilidade da vida em outro lugar, abrir fendas a uma realidade posta, apontar para a reinvenção de espaços de existência e a busca por uma certa utopia. Com Um toque de pecado, existe uma inflexão radical de olhar: não há mais fuga ou escapatória, se tudo permanece sob o signo da opressão. Jia Zhang-ke lida aqui com os mesmos tipos de personagens de seus filmes: operários, prostitutas, ladrões, imigrantes. Só que agora todos eles traduzem não mais uma melancolia, mas uma espiral que vai da insatisfação à revolta, do descontentamento à raiva. Inspiradas em relatos reais de casos de violência extrema na China, quatro histórias são narradas de forma episódica no filme e se desenvolvem em províncias diferentes: um minerador que denuncia a corrupção dos líderes de sua aldeia, um imigrante que comete assassinatos e roubos, a recepcionista de uma sauna que é amante de um homem casado, um jovem operário que muda constantemente de emprego. Em todas as histórias, os quatro protagonistas se confrontam com a precariedade de seus modos de estar no mundo, marcados por uma violência simbólica que se acumula tanto na militarização dos corpos – desde os operários que treinam as boas vindas ao empresário local, passando pelo desfile das prostitutas com uniformes de soldados – quanto na circulação do dinheiro que se revela como instrumento de poder e perdição, próximo a uma interpretação bressoniana – de seu desvio em prol do acúmulo de riquezas de abastados corruptos à consequente pauperização dos operários em condições de trabalho degradantes. A acumulação desta violência simbólica é canalizada nos corpos dos personagens em forma de violência física. Esta transição não aponta para um mero fatalismo ou pessimismo diante de um mundo que opera nestes termos, mas para uma tomada dura de consciência de uma condição imposta de vergonha, humilhação e exploração, que varia de um contexto a outro. Nesta espécie de esclarecimento ou lucidez por uma via da agressão situacional – ou seja, colocada em situação diante das historicidades de cada caso e menos em perspectiva a uma essência do mal –, há momentos de sutileza que redimensionam esta tomada de consciência: o manto com o desenho de tigre que cobre a espingarda do minerador; o tiro da pistola do imigrante que se confunde com o colorido da explosão de fogos de artifício no céu; os peixes lançados de volta ao rio pela prostituta que deseja ser salva por este ato bondoso; o jorrar de sangue mais gráfico que realista dentro da gestualidade de uma heroína dos clássicos filmes de artes marciais – A touch of zen, de King Hu, é a referência principal. São exatamente estas imagens que distanciam Um toque de pecado de outros tantos filmes episódicos que trafegam pelo mesmo tema, mas sob um viés da construção de uma tese fechada em si mesma – Crash, Babel, para citar alguns exemplos. A espiral da violência em Um toque de pecado é o fruto histórico das consequências da tirania e da opressão que já estavam presentes desde a China antiga – e tratadas em filmes sobre dinastias e artes marciais de gerações de cineastas anteriores a Jia Zhang-ke –, mas que agora se desdobram com outros contornos e contingências em uma China contemporânea, em que a globalização também produz suas distorções.