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Algo na tela resiste

Bastardos (2013), de Claire Denis



Experiência difícil até de sair da sala de cinema e voltar para o mundo. Perturbação de Bastardos. Claire Denis, como em outras ocasiões, faz um filme difícil de entrar, difícil de digerir. Num desses trailers que destacam frases de textos da crítica sobre as obras, era possível ler que Bastardos era o verdadeiro filme punk do festival de Cannes desse ano. Algo assim, se lembro bem. Por aqui, a gente gosta às vezes de falar em uma pancada. Um pouco dessas que podemos levar de uma porta que se choca com o rosto. A pancada de ver uma espiga de milho em um contexto bastante difícil e de já passar semanas com dificuldade mesmo de comer um milho cozido na rua. São umas pancadas que a imagem dá nos nossos corpos.


Violência da cena, violência dos corpos. Não há suavidade possível para filmar os destroços. Mas as imagens nunca são gratuitas. Os encontros não são da ordem de uma harmonia, de um apaziguamento. É sempre uma tensão que movimenta as cenas. Os corpos de Marco e Raphaëlle se chocam. O corpo nu de Justine perambula na rua durante a noite, após a violência que sofreu. O corpo em Claire Denis vira tensionador de percepções, desorganizador da experiência, inquietante para o corpo do próprio espectador.


Os personagens seguem percursos de risco no mundo, de inevitável choque. Na família, não existe mais lugar para conforto. Entre os seres, reina uma reconciliação impossível. E da não-reconciliação a diretora extrai a possibilidade de uma dramaturgia de intensidades, de rostos que tomam todo o quadro, de cores mais escuras em muitos momentos, de uma luz não dá tudo a ver, mas que torna os caminhos pela cena sempre mais tateantes: o olhar, para acompanhar as imagens, precisa sempre estar em movimento, entrar num ritmo, numa pulsação.


Não existem aqui caminhos fáceis. Há um estilo seco, de evitar qualquer passagem entre as imagens com fluidez. As imagens se seguem mesmo com uma economia estilística: uma arma que está no chão, mas no plano seguinte já está na mão. Os cortes vão pular, muitas vezes, o próprio momento da fatalidade maior. Um carro fica completamente destruído, ele passa na estrada sobre um caminhão, conduzido após o acidente. É uma imagem desde já bem emblemática das quebras nas vidas dos personagens, das desagregações, das relações que se complicam. Antes, tínhamos corpos destruídos também vistos junto ao automóvel. E eles experimentavam percursos perigosos nas curvas, na noite, no carro que segue pela estrada com faróis apagados. Talvez isso tenha muito a ver com o perigo mesmo de ver os filmes de Claire Denis, uma experiência de andar na estrada no escuro, com os faróis apagados, quando o corpo perde o controle sobre o visível, mas segue adiante, disposto ao impensado, ao imponderável, ao intangível. E nesse mergulho perigoso e descontrolado, cabe apenas pisar mais no acelerador.


A parte maldita. Há muitos resíduos deixados pelo caminho. O personagem de Vincent Lindon só vai descobrindo que se envolve numa trama cheia de imbricações, em que a própria família já estava toda tomada por algo que corrói. Destroços das relações, destroços na vida. Mundos se deterioram e desmoronam. As imagens da câmera de vigilância são sujas, borradas, impuras. Intolerável da cena que desorienta, incomoda. Pedro Costa já falou da importância de fazer um filme que tenha portas fechadas, um filme que dificulte a entrada do espectador, que não é feito para viver uma boa experiência ou uma situação agradável. É sempre fundamental que algo na tela resista ao espectador. É assim que não se trata de criar identificação ou empatia com a imagem, mas marcar uma distância dela, ter dificuldade com ela, ficar nas beiradas dela. Claire Denis não quer adesão. Não vemos Bastardos e criamos qualquer relação de projeção com um personagem ou com uma situação, como na codificação clássica. É uma experiência de inquietar o ver, perturbar o ouvir. Algo se interpõe, barra, faz com que assistir ao filme não diga respeito a um correr sereno e contínuo de águas. Montar uma cena que nos perturba e nos inquieta. E toda essa dificuldade da obra não diz respeito a torná-la inacessível à experiência, mas a uma crença de que não é só quem produz as imagens que trabalha: também quem as vê deve trabalhar nesse exercício mesmo do ver. É preciso estar disposto a pôr-se em movimento e lidar com as portas que podem se fechar.

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