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Para acreditar no mundo

Esse amor que nos consome (2012), de Allan Ribeiro

Sair do cinema com a potência de agir aumentada. Afetos alegres têm a ver com isso. Não que Esse amor que nos consome seja uma obra feel good: ou na moda dos filmes hollywoodianos feitos na lógica do entretenimento ou na perspectiva de certa linha de cinema independente com o qual é fácil criar uma rápida identificação e uma aproximação simpática. Esse trabalho de Allan Ribeiro, em co-criação com os artistas Gatto Larsen e Rubens Barbot, envolve uma outra ordem de relação com o corpo do espectador. Não se trata de mobilizar um público, mas de trabalhar com o espectador, num pensamento resistente sobre o desejo de ocupar, insistir e permanecer. Com resistência.


Trata-se de acreditar no mundo. E também nas forças imanentes dos Orixás, que habitam entre nós, Exu sempre por ali, fumando um charuto, com suas faixas pretas e vermelhas, assegurando que a morada seja garantida. Gatto e Barbot ocupam uma casa que está para ser vendida, com uma Companhia de Dança. Eles combinam com o proprietário que ficarão por lá enquanto um comprador não fechar contrato. Não podem comprar, porque o imóvel custa um milhão de reais, mas Barbot segue firme com a serenidade de que não sairá dali, porque, filho de Iansã, teve a garantia dos deuses de que ali residirá.


Nunca existe preocupação com qualquer iminência de perda. A falta nunca é algo que desmobiliza, mas é justo o que permite invenção. Os ensaios seguem, os possíveis compradores passam e entram na casa, enquanto as danças acontecem. Um dos visitantes cogita a possibilidade de tornar o prédio a sede de um partido político. Outro já pensa no segundo andar como possível área para fumantes. Enquanto isso, Gatto, Barbot e todos os dançarinos da companhia seguem, cuidam do espaço, preocupam-se em comprar plantas de verdade – não as de plástico, destacam – para tornar o ambiente mais interessante, conversam nos ensaios com leveza, brincam e sorriem. E a leveza aqui não é da ordem do transcendente, mas é uma leveza que puxa para o chão. Terra a terra. Mesmo os passos da dança são destacados no seu contato com o piso da casa. As conversas se dão, muitas vezes, com todos sentados no chão, como quando um dos dançarinos brinca com a habilidade de pular sentado, com as nádegas escorregando no chão, pernas estiradas, abdômen contraído.



Estar nessa casa vai se tornando uma afirmação do filme quanto a uma maneira de desejar a cidade, de ter nela um lugar e de constituir uma possibilidade política de estar com o corpo no espaço. Os dois artistas perambulam pelas ruas ou sentam nos bancos das praças para conversas informais. Barbot cria uma dança improvável com a amiga que costura algo: surge um jogo com as linhas, com o novelo, uma delicada forma de desenrolar fios para enredar-se com o outro. E Gatto caminha, com a voz off recitando trechos do Poema sujo, de Ferreira Gullar, com uma maneira sensível de perceber o entorno.


Somos convidados a entrar nesse espaço e a estar na casa. O espectador se insere nesse lugar, passa a habitar e também a desejar que ali se permaneça. É onde se costura uma colcha de retalhos, todos sentados, em mais uma das coreografias da companhia. É onde se afirmam modos de vida. A dança e a resistência. Uma colcha se estende na fachada do prédio, cobre a placa “Vendo”. Filme feito com a ginga do corpo, filme com a força dos Orixás. Esse amor nos consome para nos tornar corpos moventes.


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