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Se o cinema inventa espaços

O som ao redor (2012), de Kleber Mendonça Filho

Ao redor. Vizinhanças se encontram, se cruzam. Espaços são inventariados, corpos buscam lugares. Sair de um lugar, inventar outro. É na relação que se constitui um filme, na relação com os espaços, com os corpos, para produzir cenas. O som ao redor faz das próprias imagens e sons corpos que habitam mundos. O foco é, principalmente, um bairro de classe média do Recife, com suas experiências de insegurança, mas, sobretudo, com as modalidades de estar junto que acabam se organizando aí. Penso que o filme de Kleber Mendonça Filho tem várias entradas possíveis, seja a questão da violência urbana, seja o lugar que a classe média tem na obra, mas tomarei aqui um caminho que também toca essas questões, embora não as tenha como centrais. Tento propor um percurso com o filme que o considera um estudo de espaço.


O som ao redor percorre casas, ruas, esquinas, conecta e desconecta, multiplica lugares e constitui uma paisagem e uma geografia. Não é um mundo claramente marcado, irredutivelmente esquadrinhado, mas antes são lugares que se processam na imagem. E também na experiência sonora, central no filme, sons que preenchem o quadro e desenham planos, apontando para o porvir, para o que está também no extracampo. As relações se dão no espaço. Movimentos entre aqueles que habitam e entre eles e o mundo. A dona de casa se incomoda com os latidos do cachorro na casa ao lado. A casa, essa unidade que existe no diálogo, uma individualidade que, no espaço urbano, é constituído em conjunto com outros mundos, singularidade que só tem sentido pleno na pluralidade daquilo que é vizinhança. Os gestos de O som ao redor são moduladores de uma sensibilidade descentrada, de uma deambulação cinematográfica no corpo a corpo com os seres e com a cidade. No entremeio que a mise-en-scène abre como experiência de fissura, é de um ter lugar que trata o filme. Trata-se de saber o que vamos fazer dos nossos corpos na ocupação de um mundo. Estudo de espaço como investigação em torno da questão da polis, portanto da política.


Vem a questão de como fazer parte do comum. Porque se há um jogo constante entre os que tomam parte e os que não tomam, é sobretudo de uma operação sensível que se trata aí. Já no início, o tour por um apartamento, apresentado a uma potencial compradora, demarca lugares, um número de quartos, a vista que se tem da janela, o número de vagas disponíveis na garagem. Ao fundo, o quarto da empregada – “Bem quente aqui, né?”, diz a mulher que visita o imóvel, numa frase que faz lembrar as provocações que Kleber Mendonça também já lançava em Recife frio (2010). É uma distribuição de lugares que é tensionada, a casa como lugar por excelência de uma organização espacial ordenadora. A menina fica na janela, há uma vizinhança ao redor, lá embaixo um garoto joga bola, que acaba sendo embarcada para o lado de cá, ali no prédio visitado. Do lado de lá, o menino pede que alguém jogue a bola de volta, sem resposta. A mãe interdita qualquer preocupação da menina com a questão. Só num plano posterior, será possível, já com a câmera do lado de lá, ali na casa do garoto, ver uma bola que retorna de um lado ao outro, pulando um muro, caindo e saltando no chão, já no vazio e no silêncio de um pátio. As comunicações dos espaços parecem ensaiar.




Do lá e cá parte-se para uma progressiva complexificação da estrutura. A cidade se abre e toma a cena de múltiplas formas. A câmera percorre o caminhar das pessoas, se coloca de cima, para perceber declarações de amor no asfalto, flutua pelas casas para captar gestos cotidianos ou um beijo de um casal de adolescentes. Serão os seguranças, sobretudo, importantes intercessores nesse pensamento da geografia em O som ao redor. Eles mapeiam a área, circulam e armam uma tenda para passar a madrugada observando os movimentos das ruas. Sabem bem o que se passa em cada casa – o horário que o amante de uma mulher chega, por exemplo –, podem transitar com tranquilidade por diferentes lugares e moradas, traçam pontes entre si com os aparelhos de comunicação. Um argentino perdido pede ajuda para encontrar o prédio da festa onde estava. Comunicando-se com os colegas, um segurança convoca os demais a aparecerem nas esquinas, todos se vêm na cena, em cantos distintos ao longo da mesma rua. Há uma composição de planos que dá noções de distâncias e proximidades, um diálogo que aponta para uma virtualidade, que indica todo um conjunto que não se circunscreve ali – há algo que extrapola o quadro e que o cinema só pode dar conta por referência indireta.


A operação no espaço é maneira de habitar a cidade, afirmar a necessidade de uma relação com o mundo. Há muros altos e grades espalhando-se. E uma casa que evita essa configuração arquitetônica ao optar por muros baixos. Os espaços da cena se compõem com os espaços do mundo, para problematizar a maneira de o corpo experimentar os percursos e as fronteiras. A operação se constitui na cena, naquilo que entra e sai dela, em como os corpos se distribuem no plano, que caminhos eles traçam, que posturas eles assumem no campo. Quando saímos de uma casa acompanhados por uma bicicleta, a economia narrativa já faz cruzar histórias. A dona de casa que não suporta o barulho do cachorro vai comprar pequenas bombas na rua, um novo segurança chega para reforçar a equipe, as pessoas se encontram na esquina, a câmera passeia e acompanha a simultaneidade dos acontecimentos. E elas vêm perfurar o quadro com os corpos, vindo de direções várias, caminhando, pedalando, andando numa moto.


Há um mundo que pode proliferar na cena, multiplicidades de seres que povoam o espaço. O som ao redor elabora um olhar sobre traçados na cidade, sobre como a própria cena fílmica se constitui em relação com a cena urbana, sobre as potências do cinema em inventar lugares na tensão com um mundo no qual se procura intervir. No gesto da obra, os espaços tomam corpo e afirmam uma pregnância na cena. Talvez uma política para a qual aponte o filme de Kleber Mendonça se delineie numa pergunta: como habitar o mundo?


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