O som ao redor (2012), de Kleber Mendonça Filho
Se há uma coisa pulsante em O som ao redor, é a capacidade do filme de constituir mise en scène. Em bom português, seu trabalho de pôr em cena: tornar imagem, constituí-la. Porque se um filme é feito de ideias, não são elas que constituem a sua dramaturgia.
Kleber Mendonça Filho e seu filme agem, não uma como imagem do pensamento sobre a cidade, mas uma imagem-pensamento. Perdoem-me a cafonice da linguagem, mas aqui cada plano é construído de forma a nunca descrever, apenas, mas ambientar: escrutinar a geografia de um lugar não como um gráfico, mas um desenho, com marcas evidentes de seu traçado e um tanto de carinho. O lugar em que se coloca a câmera, o risco no espaço, o desenho dos personagens na relação corpo/câmera. A câmera planando, vez em quando um zoom bem datado denuncia: é filme. Instauração de pensamento através da trilha e do fluxo das imagens, não apenas um espaço, mas uma habitação.
Recife Guardas-noturnos. Grades para abrir e sair de casa. Paredes. Branco para todo lado. Sem graça, segundo a babá que passa o filme todo como figurante, mas tem seu momento de ‘ei, eu sou gente’: escapa do serviço e vai ter um encontro amoroso, não sem antes mudar de roupa, operação que transforma a figurante em personagem. Sair do amplo espaço da sala, subir uma escadinha e entrar no minúsculo quarto da empregada. Um plano bonito, uma política. Outra cena que desloca o espectador é a do menino-aranha, baseado em uma lenda/caso real de Recife, que passa rapidamente no corredor enquanto o casal transa na casa vazia dos patrões. Na primeira vez que assisti, no Museu da República, havia ido ao banheiro no momento em que uma das personagens, enquanto fuma maconha, vê com indiferença o menino-aranha pela primeira vez, subindo um prédio. Apesar de tencionar o delírio, ainda assim é uma espécie de plano apresentação - o que perdi na primeira vez que vi o filme. A estranheza de ver o menino passando rápido, negro, pela primeira vez me deu um choque. Aparição sobrenatural. Música de filme de terror na espinha. Sou eu, classe média, me assustando com uma criança. Medo de fantasma, ET, ladrão. Fobia urbana. Tirando o momento em que o menino acaba levando uma surra, e essa exceção não é por acaso, a violência no filme, aquela contra a qual os moradores do bairro são coagidos a se proteger, está sempre fora do quadro. Paranoia? Não, a violência existe, e está na demissão do porteiro insolente, no ‘vá e volte’ ríspido do patrão quando a empregada pede para ir deixar a roupa na lavanderia. Uma dramaturgia que entende que a imagem não é gratuita, que não existe descrição do ambiente, mas ponto de vista. Nada de mosca na parede. Ao fazer um quadro, o filme diz: estou dirigindo a partir daqui, essa é a minha posição. Para fazer isso às vezes utiliza artifícios cômicos, como o velho coronel que vai nadar a despeito dos tubarões. Botar a câmera atrás das grades, não em qualquer lugar da sala, é sempre uma tomada de posição, um dar à vista, uma posta em cena política. Toda forma pensa, mas a consciência desse processo me parece bem mais clara aqui do que em boa parte do cinema corrente. Que cinema? Difícil. Cabe dizer que só consegui ver o filme no Rio de Janeiro, graças a uma providencial viagem, porque aqui em Fortaleza ele ficou em cartaz pouco mais de uma semana, em uma sessão tarde da noite. O cinema do Dragão do Mar continua fechado, e é ainda a única opção de se ver um filme menos industrial na cidade. (Atualização: texto escrito no começo do ano, essa semana aventamos com a reabertura do cinema, agora em parceria com a Fundação Joaquim Nabuco e uma ampla programação de abertura. Confiramos o que vai se desenrolar).
Nem realismo, nem sobrenatural. No filme de Kleber, um naturalismo que zomba de si mesmo, como na cena da reunião de condomínio em que uma moradora reclama do porteiro porque sua revista Veja tem sido entregue fora do plástico. Piada boba, um dos poucos momentos em que o filme larga um pouco a sutileza com que constrói a tensão das relações. A festa familiar é um momento, acontecimento. De repente pequenos absurdos da vida burguesa, algum carinho, o velho/vilão se tornando uma criatura fofa. E o desfecho que dá um nó, talvez desnecessário, mas que ainda assim é um nó em suspenso.