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O MAL ESTAR DA BRANQUITUDE

10 jun. 2018

Por Camila Vieira

No início do documentário Você já se Perguntou Quem Atirou? (Did You Wonder Who Fired the Gun?, 2017), o diretor Travis Wilkerson faz uma advertência: “essa é a história de um pesadelo branco”. Com uma narrativa em voice over, o realizador parece guiar o espectador para sua investigação contada em primeira pessoa, em torno de uma mancha trágica na história de sua própria família. Composto por imagens em preto e branco e, em alguns planos, saturado com tom de vermelho sangue, o longa-metragem é a explicitação do mal estar de um cineasta branco falando sobre sua própria herança de branquitude.


As raízes do mal estar atravessam o episódio em que S.E. Branch, o bisavô de Travis, assassinou o negro Bill Spann dentro da loja que mantinha na cidade de Dothan, no Alabama, em 1946. Em contraponto ao romance O Sol é Para Todos, de Harper Lee, que foi adaptado para o cinema em 1962, Wilkerson não pretende mostrar mais uma história de um homem branco, herói e salvador das causas negras, como representa o personagem de Atticus Finch. “Ele não é um ser humano. Não xinga, não comete erros. É um santo”. O que Wilkerson está interessado é em desfazer tal imagem ao aprofundar o olhar para um homem como seu bisavô: um branco linchador, que odiava negros e abusava de mulheres. “Brancura pode incinerar uma família”, conclui Wilkerson.


Apesar do gesto corajoso de refletir sobre o racismo no interior de sua própria família, o diretor não parece confrontar a fundo tal passado. Mesmo com a dificuldade de encontrar informações sobre Bill Spann – apenas duas matérias no jornal e a certidão de óbito –, a investigação do entorno procede de maneira distanciada, inclusive na forma como entrevista personagens negros contemporâneos ao episódio. Em algum ponto do filme, Wilkerson reconhece tal limitação, que nada mais é que a manutenção do racismo: como homem branco de privilégios, ele ganhou dinheiro para filmar as imagens do cemitério onde está enterrado um homem negro pobre em uma sepultura sem nome.


Travis tem consciência do poder de sua câmera. No entanto, pouco faz no enfrentamento com membros da família que integram o movimento supremacista sulista dos Estados Unidos. Ainda que a boa intenção do diretor seja a de não oferecer mais plataforma para a ideologia racista, o confronto entre a tia Jean – a irmã mais velha que nega o episódio e defende a figura de S.E. Branch – e Jill – que revela que este mesmo homem a molestou e abusou de sua mãe – se dá por meio de cartas escritas, que passam pela mediação da voz do próprio Wilkerson. O procedimento não consegue se desvincular de um certo desejo de manutenção da integridade da família. Apesar de todas as horríveis revelações e constatações feitas, a imagem que ainda parece sobreviver é aquela limpidez dos filmes caseiros que o diretor teve acesso e nem tanto a de um horror em que não é possível estar salvo.

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