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A VIDA PROVISÓRIA: A MELANCOLIA COMO RESPOSTA NO CINEMA POLÍTICO DO PÓS-GOLPE DE 1964

Por Wallace Andrioli Guedes *

Num certo momento, ainda no início de sua narrativa, A Vida Provisória (1968) remete à situação central dos protagonistas de Casablanca (1942). Assim como Rick (Humphrey Bogart) em relação a Ilsa (Ingrid Bergman) no clássico de Michael Curtiz, Estevão (Paulo José) mantém um relacionamento com uma mulher casada (Dina Sfat) prestes a deixar o país em companha do marido, num contexto de autoritarismo. No entanto, esse primeiro e único longa-metragem dirigido pelo crítico mineiro Maurício Gomes Leite se filia a um cinema mais abertamente político – é verdade que há essa dimensão em Casablanca, considerando a ambientação e o papel exercido pelos nazistas na história, mas claramente o interesse principal de Curtiz e dos roteiristas Howard Koch, Julius e Philip Epstein está na história de amor frustrada pelos tempos de guerra e não no embate ideológico propriamente dito – e, sobretudo, moderno.

Nesse sentido, a comparação mais adequada se dá no âmbito do próprio cinema político brasileiro da segunda metade dos anos 1960, contaminado, constrangido, em boa medida determinado pelos recentes acontecimentos na esfera do poder: a derrubada do presidente João Goulart por um movimento golpista civil-militar, que instaurou, já no imediato pós-golpe, perseguição às principais forças de esquerda (trabalhistas, comunistas, movimentos estudantis, camponeses e operários, militares e funcionários públicos progressistas, etc.). O Desafio (1965), de Paulo César Saraceni, geralmente rememorado como o primeiro filme a reverberar essa ressaca da derrota de 1964, é, curiosamente, também um bom parâmetro de comparação para A Vida Provisória no que concerne à vida amorosa de seu protagonista. Como Estevão, Marcelo (Oduvaldo Vianna Filho), jornalista de esquerda, está envolvido com uma mulher comprometida – nesse caso, a burguesa Ada (Isabella), esposa de um industrial apoiador do golpe que derrubou Goulart.

A narrativa de O Desafio é construída justamente sobre o impasse que esse relacionamento gera para Marcelo e sua necessária superação para o engajamento numa nova fase da luta política, agora mais radical. Ainda que a adesão do protagonista à guerrilha não seja posta explicitamente por Saraceni, a cena que encerra o filme insinua esse caminho. Após finalmente romper com Ada, ele desce uma longa escadaria rumo ao fervilhar da vida urbana no Rio de Janeiro, palco de algumas das mais importantes ações das organizações revolucionárias nos anos seguintes (como o sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick, em 1969), sendo acompanhado pela canção "Tempo de guerra", da peça Arena conta Zumbi, de Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal. Diz a letra, composta por Edu Lobo: “Eu vivo num tempo de guerra/ Eu vivo num tempo sem sol/ [...] Dizem crenças antigas/ que viver não é lutar./ Que sábio é o que consegue/ ao mal com o bem pagar./ Quem esquece a própria vontade,/ quem aceita não ter seu desejo/ é tido por todos um sábio./ É isso que eu sempre vejo/ é a isso que eu digo Não!/ Eu sei que é preciso vencer/ Eu sei que é preciso brigar/ Eu sei que é preciso morrer/ Eu sei que é preciso matar./ É um tempo de guerra, é um tempo sem sol./ Sem sol, sem sol, sem dó.”


O Desafio e A Vida Provisória, aliás, têm essa capacidade de dialogar muito abertamente com expressões artísticas de seu contexto de produção, captando os impactos delas numa classe média intelectualizada e progressista. Saraceni não só recorre a Arena conta Zumbi, como também referencia o filme Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha, e o espetáculo teatral Liberdade, Liberdade, de Millôr Fernandes e Flávio Rangel, ambos através de cartazes vistos em cena, e dedica tempo considerável da narrativa à apresentação de duas canções (“Notícia de Jornal” e “Carcará”) de outra peça, Opinião, de Boal, da qual o protagonista Marcelo é espectador. Gomes Leite, por sua vez, cita Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha – Estevão tem em seu quarto uma imagem de Paulo Martins (Jardel Filho) de metralhadora em punho –, e outra canção de protesto, “Ponteio”, de Edu Lobo, presente na trilha sonora de A Vida Provisória – ela acompanha boa parte das cenas da parte final do filme, que, ambientadas em Brasília, representam esforço mais direto de denúncia da miséria experimentada por parcelas significativas da população da nova capital.

      

A Vida Provisória, no entanto, vai além na captura de um momento do país – quando comparado não só com O Desafio, mas com Terra em Transe e O Bravo Guerreiro (1968), de Gustavo Dahl, todos filmes políticos marcados por essa melancolia pós-golpe de 1964 –, ao pontuar sua narrativa com referências a episódios de 1968 no Brasil. Em determinada cena, por exemplo, o protagonista é visto lendo jornal com a manchete “Morte de estudante emociona todo o país”, o que remete diretamente ao assassinato do secundarista Edson Luís pela polícia em março daquele ano. Em outra, na qual Estevão trafega por Brasília à procura do homem para quem deve entregar um conjunto de documentos reveladores de negociatas entreguistas em curso no Ministério dos Assuntos Exteriores, vê-se pichação num muro que diz “ditadura mata estudante”. Além disso, em diálogo do jornalista com sua amada Paula é citado o caso dos “cinco do Capri”, pequeno grupo de intelectuais presos pelo governo – referência clara ao episódio dos “oito do Glória”, em que Carlos Heitor Cony, Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Antônio Callado, Thiago de Mello, Jaime de Azevedo Rodrigues, Flávio Rangel e Mário Carneiro foram detidos pela Polícia do Exército ao se manifestarem contra a ditadura em frente ao Hotel Glória, local da conferência da Organização dos Estados Americanos (OEA) que contava com a presença do então presidente Castello Branco.

Vale lembrar que Terra em Transe, por exemplo, o mais celebrado e politicamente impactante desse conjunto de filmes, opta, ainda que não necessariamente num gesto de autocensura (mas muito mais em razão de questões internas ao próprio cinema de Glauber, ligadas a uma pulsão alegórica que mira na reflexão sobre a América Latina, ou mesmo o Terceiro Mundo, como um todo), pela ambientação de sua trama num país fictício, Eldorado, que, claro, em diversos aspectos remete ao Brasil da década de 1960. Terra em Transe que, aliás, guarda outros pontos de contato com A Vida Provisória: a denúncia da entrega das riquezas nacionais a uma empresa estrangeira, tema também caro às esquerdas do período (que acusavam, com consideráveis doses de razão sobretudo quando se referiam ao governo de Castello Branco, a ditadura militar brasileira de subserviência econômica e política aos Estados Unidos, principais símbolos do imperialismo capitalista em meio à polarização da Guerra Fria), e, novamente, a situação amorosa do protagonista, já que Paulo, como Estevão (e Marcelo, de O Desafio), trafega entre o amor e a política.

   

Outro aspecto importante de se considerar é a modernidade cinematográfica de A Vida Provisória. Salta aos olhos a decupagem de algumas cenas de diálogo entre Estevão e Paula, que claramente rementem à estética da Nouvelle Vague, a momentos célebres de Acossado (1960), de Jean-Luc Godard, protagonizados por Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg. Num quarto como o de Belmondo e Seberg, os personagens de A Vida Provisória têm a dinâmica de suas conversas interrompida, adiantada, reconfigurada pelo uso de jump cuts. A opção por enquadramentos que fogem da lógica do campo/contracampo e a semelhança entre alguns assuntos (o anúncio da gravidez) e gestos (a mulher colocando um disco na vitrola) reforçam essa aproximação, ainda que o tom adotado por Gomes Leite seja bem mais grave, distante da jocosidade de Godard.

   

Essa modernidade também ganha corpo na fragmentação da narrativa e no uso estrutural da metalinguagem. A história contada em A Vida Provisória é apresentada pela narração em off – espécie de voz onisciente que, na verdade, em outros momentos dá lugar a outras vozes: a do próprio protagonista e a de sua ex-namorada, Lívia (Joana Fomm) – como representação fílmica construída por amigos de Estevão após sua morte, a partir de anotações que ele deixou para a realização de um filme autobiográfico. Um filme incompleto a partir de notas incompletas, como ressalta o narrador (e, posteriormente, o próprio Estevão, ao dizer a Paula como seria a história dos dois no cinema), por se tratar, na verdade, da biografia de uma vida interrompida pela violência politicamente motivada. Portador de documentos que denunciam o entreguismo do Ministro dos Assuntos Exteriores de um fictício (mas não muito) governo brasileiro, Estevão é primeiramente sequestrado e brutalmente espancado por dois homens (José Lewgoy e José Wilker) a serviço do poder, e, ao insistir na denúncia, levando o ocorrido até parlamentares da oposição e prometendo a continuidade de sua luta, termina sumariamente assassinado. A história da ditadura militar brasileira está eivada de mortes do tipo, de adversários do regime a possíveis “queimas de arquivo”. Mas, no insuportável presente de 2018, tempos de Marielle Franco executada, tem especial impacto a cena do protagonista de A Vida Provisória sendo alvejado inadvertidamente por um tiro fatal. 

É interessante observar como essa incompletude se manifesta também na construção fragmentária da narrativa. O filme tem início com uma sucessão aparentemente confusa de planos, que não se articulam temporalmente de forma clara nesse primeiro momento: Paula caminhando, aparentemente desolada, pelas ruas do Rio de Janeiro e acessando o apartamento de Estevão (à porta, os dois se beijam apaixonadamente); ele numa lanchonete, se aproximando de um terraço e, em seguida, também caminhando pela cidade; uma porta de avião se fechando, a decolagem por sobre a Baía da Guanabara, novamente o casal se beijando, o protagonista conversando em Brasília com um homem claramente irritado (Hugo Carvana); Estevão cumprimentando um sujeito num gabinete, outra figura, aparentemente importante (Mário Lago), discursando enquanto é acompanhada por um séquito de possíveis assessores atentos; o protagonista ao lado de uma jovem diante do painel fotográfico de uma metrópole e, em seguida, numa região árida, deserta, com o rosto machucado e a camisa rasgada; novamente na porta de seu apartamento, onde Paula entra angustiada; caminhando por um corredor, conversando com outro homem num restaurante, em seguida com uma mulher e a filha dela, moradoras de alguma periferia. Tudo isso intercalado por planos aéreos do Rio e pela narração em off que diz: “essa é a história de Estevão, 28 anos. Um dia, Estevão não pôde mais voltar ao Rio de Janeiro, cidade que amava, e que amava... Paula. Num quarto de hotel, em Brasília, foram encontradas algumas anotações sobre um filme autobiográfico que Estevão pretendia fazer quando tudo tivesse passado. A revolta, talvez, também, o amor. Não chegou a fazer o filme. Agora, uma equipe de amigos de Estevão resolveu levar ao cinema sua história. Nem todas as situações puderam ser reproduzidas, as notas deixadas por Estevão são incompletas, algumas ideias são reunidas de forma vaga. Em muitos pontos, nossa equipe tomou a liberdade e a cautela de apenas sugerir os acontecimentos.”


Esses fragmentos de cenas ressurgem posteriormente inseridos nos blocos narrativos dos quais fazem parte, se tornando, então, inteligíveis. Mas a fragmentação como procedimento continua presente, por exemplo, no trecho de A Vida Provisória ambientado em Belo Horizonte. A capital mineira serve de escala na viagem de Estevão até Brasília e é onde ele reencontra Lívia. A conversa entre os ex-namorados se desenrola dentro de um ônibus, abordando de maneira fluida o passado e o presente – como eles eram na juventude e o que se tornaram na vida adulta, tensão manifesta no convite repentino feito ao protagonista, por outro passageiro, para um debate político seguido da exibição de um filme na universidade, ao qual Estevão responde dizendo não saber se irá, por não ter tempo. A militância do passado versus as responsabilidades do presente. Através da alternância de narrações em off, então, o filme retorna à juventude do casal e o passado, de certa forma, se concretiza no presente: talvez tomados pela nostalgia, eles ressurgem adultos em cena na atividade militante para a qual foram convidados, assistindo a um filme político de vanguarda.

Gomes Leite fratura o tempo nessas duas passagens de A Vida Provisória, embaralhando a cronologia narrativa: no primeiro caso, ao criar espécie de trailer do que será mostrado posteriormente (comentário metalinguístico coerente com a narração em off que anuncia a condição fílmica da história de Estevão); no segundo, promovendo o encontro entre passado e presente por meio de reminiscências memoriais do protagonista e de sua ex-namorada. Em relação a esse momento específico, cabe destacar ainda o filme visto por Estevão e Lívia. Trata-se de exemplar de um cinema político universitário, experimental, protagonizado por uma jovem militante, Tereza (Renata Sorrah), que é abordada, agredida, torturada psicologicamente e morta por dois agentes da repressão. Consumado o ato, vem um gesto recorrente na rotina policial, em tempos ditatoriais e democráticos: a construção de uma versão oficial do ocorrido, aqui materializada ironicamente no relatório de um dos sujeitos, que atribui a morte de Tereza a um “trágico acidente”.

Durante a ditadura militar, com boa parte da imprensa sob censura (ou praticando a autocensura), essas versões eram repetidas em jornais e revistas sem qualquer espaço para o contraditório, impostas às redações por meio dos infames “bilhetinhos”. Mais do que isso até: em estudo sobre o tema, a historiadora Beatriz Kushnir mostra como o jornal Folha da Tarde, de São Paulo, contribuía com a corroboração das narrativas apresentadas pelos órgãos de repressão para as mortes de guerrilheiros, passando, com sua verve de jornalismo policial sensacionalista, da mera reprodução de uma nota oficial à construção de matérias substanciais sobre os supostos fatos. “Tem-se a impressão, ao ler a notícia, de que havia um jornalista desse periódico cobrindo o fato”, observa Kushnir – a Folha da Tarde, na verdade, era, nesse momento, um veículo imbuído nos valores do regime de combate ao “terrorismo” e a “ideologias alienígenas”. Nesse sentido, é sintomático que a representação da derrota das esquerdas em A Vida Provisória passe por colocar Estevão, militante político na juventude, trabalhando num jornal conservador no contexto ditatorial. 

Desse contraste entre a luta política desinteressada do passado e as obrigações pragmáticas da profissão no presente, nasce a melancolia instalada em Estevão. Não se trata do único personagem profundamente melancólico que Paulo José interpretou nessa segunda metade da década de 1960: tal sentimento também está presente nos protagonistas de O Padre e a Moça (1965) e Macunaíma (1969), ambos de Joaquim Pedro de Andrade, e no Marcelo de As Amorosas (1968), de Walter Hugo Khouri. No entanto, as razões de cada um desses são diversas. A angústia com um amor proibido pela instituição da qual é parte e pelo conservadorismo de uma pequena cidade do interior de Minas Gerais; a solidão resultante do excesso de malandragem, que expulsou para longe as pessoas das quais gostava; o vazio existencial e a falta de sentido de uma vida errante. Em A Vida Provisória, questões relativamente próximas a essas se encontram com o componente político: a experiência da derrota, o servir ao inimigo, o não poder fazer nada diante de um poder altamente destrutivo, que, como o carcará da canção do Opinião, registrada em O Desafio, “pega, mata e come”.

* Historiador e crítico de cinema. Começou a escrever em blogs na internet em 2003, mantendo, desde 2008, sua atual página, Crônicas Cinéfilas. Desenvolveu pesquisas relacionadas à história do cinema brasileiro no mestrado e no doutorado em História. 

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